O cachorro da patroa, por Juliana Brandão

26 de setembro, 2024 Fonte Segura Por Juliana Brandão

Miguel, uma criança negra de cinco anos, morreu após cair do 9º andar de um prédio de luxo, no Recife. O fato de sua morte seguir reverberando sem resposta satisfatória do Estado Brasileiro é sinal de uma sociedade enferma, que tem se recusado a revisitar os parâmetros que realmente importam

Dar às coisas o nome que elas têm. Além de um imperativo da vida em sociedade, é uma indicação do valor do que está em jogo. Por outro lado, a busca de argumentos ancorados em um saber situado exclusivamente no registro técnico pode até pôr fim à demanda, mas nem de longe efetiva a fruição de direitos.

A jurisprudência brasileira tem sido pródiga em recrutar pesos e medidas desproporcionais. O caso Miguel, que completou quatro anos sem desfecho definitivo, atesta essa lógica de modo evidente. Mais um menino negro cuja existência foi assinalada com a marca do desvalor. Mais uma mãe negra de quem se exige resiliência para seguir com o processo judicial.

No dia 2 de junho de 2020, Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, acompanhava sua mãe Mirtes na jornada de trabalho pois, não esqueçamos – era pandemia. E, para as domésticas, home office se traduz de outro modo. Com as creches fechadas, muito embora o trabalho doméstico não tenha sido considerado como essencial, Mirtes seguiu trabalhando presencialmente, para não perder o emprego.

Miguel morreu após cair do 9º andar de um prédio de luxo, no Recife. Em uma situação que contraria qualquer lógica de cuidados com uma criança – portanto, estamos lidando com um fato evitável – Miguel foi colocado sozinho em um elevador pela empregadora de sua mãe. O “combinado” era outro – enquanto Mirtes passeava com o cachorro da patroa, essa mesma cuidaria de Miguel. Parecia uma relação de ganha-ganha, mas a desigualdade uma vez mais se impôs.

Aqui não pretendo discutir os meandros processuais envolvendo essa demanda. Quero é chamar atenção para o valor arbitrado para a vida humana. A patroa segue respondendo o processo em liberdade. A família de Miguel soma reveses jurídicos. O último deles, vindo do Superior Tribunal de Justiça, suspendeu a ação que determinava o pagamento de indenização de R$ 1 milhão, imposta aos ex-patrões de Mirtes.

Em decisão de quatro páginas, datada de 6 de setembro último, o STJ, na figura do ministro Bellizze, sob o argumento técnico de conflito de competência, entendeu que o pedido de danos morais não teria relação direta com o contrato de trabalho entre a mãe do menino e a ex-empregadora.

De fato, passear com o cachorro da patroa não é função albergada nas tarefas do emprego doméstico. É sim a desnaturação do escopo de trabalho, que só reforça a configuração do quadro frequente de abusos contratuais a que estão submetidas tantas mulheres negras – e, novamente, aqui nos encontramos de frente com as interseções de gênero e raça.

Isso evidencia ainda a inversão de valores e o fosso em que se situa a massa de trabalhadoras domésticas brasileiras – a mãe da criança não pode cuidar do seu próprio filho, pois os imperativos da sobrevivência fazem com que se submeta a trabalhar em condições impróprias que impactam, inclusive, suas funções parentais. A tutora do cão não pode cuidar do seu próprio animal de estimação, pois os imperativos da vida – no caso em questão, resumidos a “fazer as unhas”, tomam o espaço para se implicar com o que dá trabalho.

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