(Folha de S. Paulo, 29/10/2015) Em junho, Kate Burnham, chef confeiteira de renome do Weslodge, um restaurante popular de Toronto, entrou com uma queixa no Tribunal de Direitos Humanos de Ontário, alegando que três chefs, todos homens, a tinham assediado repetidas vezes, verbal e fisicamente. E conta que, em diversas ocasiões, os colegas passaram as mãos entre suas pernas, agarrando sua virilha, e a segurando enquanto fingiam penetrá-la por trás –tudo isso na frente do resto da equipe.
A surpresa não é a acusação de Kate –afinal, ataques desse tipo acontecem em praticamente todas as cozinhas profissionais– mas sim o fato de que finalmente alguém resolver romper o silêncio.
De fato, nos vários meses desde a denúncia da moça, acontece uma discussão incômoda, mas necessária, nas principais cozinhas não só do Canadá, mas dos EUA e ao redor do mundo sobre a forma como o sexismo mantém as mulheres isoladas –e o que fazer para mudar isso.
Há muito as cozinhas da alta gastronomia são vistas como domínio masculino, com os alunos de culinária venerando homens brutais, mas supostamente geniais –como, por exemplo, o “bad boy” Marco Pierre White– que se tornaram populares graças ao personagem ridículo de Gordon Ramsay.
Esse último, pelo menos na TV, é também um abusador inveterado, mas representa o que a sociedade decidiu ser o chef ideal: agressivo, grosseiro e, acima de tudo, homem.
O que não vemos com frequência é o comportamento que esse tipo de ambiente cria entre as pessoas que nele vivem. Sob estresse extremo, os jovens chefs descontam suas frustrações nas poucas mulheres que ousam invadir seus domínios.
Eu nunca fui chef, mas sou dona e administro restaurantes há quase 20 anos e as várias coisas que vi –às vezes nas minhas próprias cozinhas– sempre me chocaram. Geralmente vão muito além do machismo diário com que nós, mulheres, temos que lidar, caracterizando-se inegavelmente como assédio e violência.
Ataques com pinças, puxão no sutiã, agarrões contínuos –as chefs aprendem rapidinho a agachar, nunca se curvar para pegar uma panela. Uma conhecida minha, que trabalha na cozinha de um restaurante famoso com filial em Toronto, conta verdadeiras histórias de horror de um chef que chegou a servir a comida para as funcionárias em tigelas de metal, no chão, porque “é onde cachorro come”.
Muitas profissionais que conheço no setor ouviram a história de Kate e quase bocejaram –não porque não se comoveram, mas porque já a ouviram muitas vezes antes. (Infelizmente sei de muitas tão insensíveis quanto muitos homens em relação à incapacidade delas de não “cortarem” esse tipo de comportamento.)
Mas então por que mais mulheres não botam a boca no trombone, como fez Kate? Na verdade, muitas o fazem: segundo a Comissão de Oportunidades Iguais de Emprego dos EUA, o setor de restaurantes é a maior fonte de reclamações de assédio sexual, entretanto só algumas vêm “da frente da casa”. Isso porque, em muitos estabelecimentos, (embora não todos), esse tipo de trabalho –cuidar do bar, servir as mesas– é geralmente transitório, o tipo de emprego que se tem durante a faculdade ou antes de se firmar como artista.
Na cozinha é diferente –principalmente as dos restaurantes de alta gastronomia, onde o objetivo é construir a carreira. O início é sempre na preparação, ou algum lugar na “linha de produção”, com a esperança de, um dia, poder chegar a “sous chef” ou abrir o próprio negócio. Os melhores trabalham como uma equipe coesa, estimulando a competição como forma de se superarem e suportarem uma jornada de 14 horas diárias.
Essa camaradagem tem que existir justamente pela exigência do trabalho –e pode ocorrer sem precisar se transformar em um ambiente caótico de violência e assédio tolerados, corroborado por um código tácito de silêncio. Muitas mulheres não veem o benefício das acusações.
É o caso especialmente em uma cidade como Toronto que é grande, mas não o bastante para passar incólume pelo fato de não ser “parte da turma”. Mesmo em uma metrópole imensa como Nova York, a comunidade de restaurantes exclusivos é pequena e as notícias correm. Assim, as mulheres preferem ficar quietas e se ajustar a um ambiente movido à testosterona a ter que abandonar o ramo.
Embora haja muitas mulheres talentosas saindo das escolas de gastronomia, não é surpresa ver que relativamente poucas chegam ao topo do setor. Os apologistas dirão que é porque elas são moles demais, mas na verdade têm que ser desinteressantes em um ambiente de trabalho que não só é hostil como obviamente procura degradá-las.
Kate Burnham foi corajosa em vir a público, mas foi preciso ainda mais força para suportar os ataques sexistas que recebeu nas redes sociais. (Desde então ela deixou a gastronomia.) O desafio agora é ver outras mulheres do ramo denunciando abusos.
Quando soube que havia discriminação nas minhas cozinhas, agi rápido e gosto de pensar que criei um ambiente decente para os meus funcionários. Só que o problema vai além de meia dúzia de laranjas podres; é a cultura. Precisamos de conscientização, de mais gente denunciando e um padrão de tolerância zero dos líderes do setor. Só assim, aos poucos, criaremos uma nova indústria, que fará a era do machismo parecer o triste anacronismo que merece ser.
Jen Agg é restauratrice em Toronto e está escrevendo um livro de memórias.
Acesse o PDF: O sexismo na cozinha dos grandes restaurantes (Folha de S. Paulo, 29/10/2015)