Estamos sem refeitório no trabalho e nos organizamos para fazer um almoço comunitário em nosso setor. Cada um traz um prato e todos comem juntos. Um momento de compartilhar. Em nenhum dia eu lavei a louça e colaborei apenas com itens comprados. Eu não preparei nenhum prato. No último dia dessa diferente semana, me vi insistindo para lavar os pratos (coisa que não gosto de fazer). Um colega assumiu a tarefa e, naquele momento, fiz um esforço para entender que posso e devo, em algum momento, não fazer todas as coisas. O sentimento que tive não foi sem motivação. Nós, mulheres negras, precisamos sempre comprovar nosso valor e isso nos obriga a fazer mais do que os demais. Inconscientemente, eu estava reproduzindo isso ao buscar, desesperadamente, lavar a louça.
Essa pequena cena diz muito sobre a nossa sociedade. O peso do cuidado e do trabalho invisível recai quase sempre sobre as mulheres e, de forma ainda mais pesada, sobre as mulheres negras. Somos ensinadas desde cedo que precisamos trabalhar duas vezes mais para sermos vistas, ou mesmo para sermos minimamente aceitas. Isso se traduz em inúmeras situações, desde a cozinha de um almoço coletivo até às redes sociais ou os espaços mais formais como o trabalho, a academia e a política.
No ambiente profissional, somos responsáveis por uma carga de trabalho que vai além do que está em nossos contratos. Não apenas realizamos nossas funções formais, mas também nos vemos assumindo papéis de cuidadoras emocionais, organizadoras e mediadoras de conflitos. Muitas vezes, lideramos iniciativas de diversidade e inclusão, gerenciamos equipes informais e, ainda assim, nosso trabalho é minimizado, tratado como um detalhe ou como algo “natural”.
Porém, quando ousamos nos posicionar, enfrentamos outra barreira: o estigma de sermos vistas como “raivosas” ou “agressivas”. Essa leitura enviesada do nosso comportamento não é acidental; ela faz parte de um sistema que nos reduz ao silêncio. Enquanto outros têm o direito de expressar frustração ou de falar de maneira assertiva, nós, mulheres negras, somos monitoradas de perto. Qualquer sinal de descontentamento é usado contra nós, como se nossa indignação fosse uma ameaça. Essa vigilância constante sobre nossa postura e tom é desumanizadora e reforça a narrativa de que devemos carregar nossas lutas com resignação, sem incomodar ninguém.
Esforço subestimado
Mesmo que uma mulher negra coordene grandes grupos de pessoas, esse esforço é frequentemente subestimado, tratado como algo natural ou de menor relevância, ignorando sua complexidade e impacto. Essa desvalorização reflete uma visão limitada sobre o que significa liderar e reforça a necessidade de repensarmos o valor atribuído a diferentes formas de ativismo e liderança.
Na política, mulheres negras são eleitas para representar seus pares e para lutar por causas que atingem diretamente a realidade de seus grupos sociais, mas enfrentam uma desproporcionalidade de cobranças e um constante policiamento de seu trabalho e de sua imagem. Na academia, somos frequentemente deixadas à própria sorte para traçar nossos caminhos. Pesquisadoras negras precisam, solitariamente, buscar respostas e encontrar caminhos, enquanto, outros pesquisadores são guiados e orientados.
O desenvolvimento profissional de uma mulher negra é tratado como uma responsabilidade individual, não como algo que merece investimento coletivo. As oportunidades não chegam naturalmente, elas precisam ser conquistadas a duras penas. Não somos encorajadas nem ganhamos a mentoria que tantas outras pessoas recebem como padrão. É como se o sistema presumisse que sabemos cuidar de tudo, mas nunca precisamos de cuidado.
Nas redes sociais, é necessário manter o equilíbrio entre compartilhar nossas vivências e atender às demandas de um público que espera de nós posicionamentos, respostas e, muitas vezes, um cuidado que também se torna invisível. Mesmo em redes menores e mais comunitárias, como grupos de mensagens, onde as pessoas compartilham experiências e discutem estratégias sobre diversos temas, quando o papel de organização e coordenação recai sobre mulheres negras, esse trabalho de coordenar se torna invisível, mesmo que seja fundamental para o sucesso da comunidade.
Isso demonstra como o trabalho invisível realizado por mulheres negras é indispensável, mas raramente reconhecido como liderança. Construir colaborações sólidas, facilitar aprendizados, gerenciar conflitos e formar novas gerações são atividades que sustentam organizações e comunidades. Apesar disso, essas funções são constantemente relegadas à invisibilidade, da mesma forma que o trabalho doméstico e reprodutivo que realizamos em nossas casas.