(Opera Mundi, 27/12/2014) Parlamento britânico proibiu uma série de práticas na pornografia online; profissionais da indústria dizem que medida discrimina mulheres e práticas sexuais alternativas
As recentes mudanças na regulamentação britânica sobre pornografia na Internet não ficaram sem contestação. No dia 12 de dezembro, pelo menos vinte casais protagonizaram cenas de face-sitting às portas do Parlamento inglês diante de centenas de jornalistas.
Face-sitting é uma posição sexual em que, normalmente, uma mulher se senta sobre o rosto de um homem. Desde o dia 01 de dezembro, internautas britânicos não podem acessar conteúdo pornográfico que mostre esta posição. A nova lei a considera “inaceitável”, interpretando-a como restrição da respiração, a menos que a cena deixe perceber claramente que a pessoa cujo rosto se afunda nos genitais alheios pode respirar sem dificuldades. “Aparentemente – escreveu em seu blog o advogado britânico especializado em pornografia Myles Jackman – a razão é que os homens que tentem reproduzir a posição em casa podem morrer”.
Face-sitting não é o único item da extensa lista de restrições que o Reino Unido aplica aos vídeos pornográficos em sites pagos na Internet. A legislação britânica considera que já que qualquer pessoa pode assistir pornografia sem comprovar a idade, seria melhor retirar tudo o que “pudesse prejudicar os menores”. Comercialmente e na prática, são prejudicadas as pequenas produtoras, que vendem material com representações alternativas da sexualidade, sob o rótulo de kink porn ou alt porn.
Por exemplo: a urina e a ejaculação feminina (squirting) são aceitáveis, desde que não caiam sobre outra pessoa. Não obstante, a ejaculação masculina sobre outra pessoa é aceitável. Além disso, para que a ejaculação feminina seja permitida durante o sexo ou a masturbação, deve ser breve – não pode durar mais de um minuto – e íntima, não pode haver mais do que um único casal envolvido. A penetração da mão não é aceitável se deixamos de ver o dedo mindinho, ato conhecido como fisting ou penetração de punho. A ingestão de sêmen é aceitável, mas não a de fluidos femininos, urina, vômito ou fezes.
A performer Diana J. Torres, conhecida por seu nome artístico Pornoterrorista, costuma ministrar oficinas sobre squirting. “As sociedades em que vivemos fecharam a torneira das mulheres há muitos séculos”, explica, “basicamente quando se descobriu que o ‘sêmen’ feminino não tem um papel na reprodução. A nova norma britânica não é tão estranha, já que corresponde à ideia generalizada de que as mulheres não podem ejacular e que qualquer líquido que saia de entre suas pernas será necessariamente urina, quer dizer, algo insalubre e escatológico”.
Erika Lust é escritora, diretora e produtora de pornografia. Indagada sobre estes critérios, que parecem diferenciar atos semelhantes de acordo com quem os faz, ela nos responde com as seguintes perguntas: “Quando se decide algo assim, é por ignorância ou por distorção ideológica? Onde começa uma e acaba a outra? Esta lista estabelece normas distintas para homens e mulheres. Isto não seria a definição mais básica de sexismo? Consigo entender, ainda que não concorde, o raciocínio por trás de algumas regras, como a que diz respeito ao estrangulamento, mas em geral me parece que se partiu de uma versão totalmente primária, genital e masculina do sexo”.
“A sexualidade é uma das coisas mais manipuladas e restritas que temos”, analisa a Pornoterrorista, citando a norma educacional de que o gênero é “binário” (homem/mulher) ou que o corpo “não nos pertence”. “Para nós mulheres, dizem que fazer sexo sem amor é ilegítimo e estigmatizam as que o fazem como ‘putas'”.
Este mesmo atraso é colocado em evidência por Miguel Vagalume, ativista e co-criador do coletivo espanhol Golfxs com Princípios, a quem chama a atenção o fato de que “o squirting tenha sido proibido por motivos morais, enquanto seu semelhante masculino, a ejaculação, não seja visto como algo ofensivo”. Outros atos sexuais censurados fazem parte das práticas BDSM e, portanto, são habituais nas produções cinematográficas. “Quanto à chuva dourada, o face-sitting, o bondage, os insultos… chama a atenção que a censura se foca em comportamentos que só podem ser vistos como ‘obscenos’ de um ponto de vista muito tradicionalista e heterossexual, dando espaço central ao homem e à sexualidade masculina, centrada no coito e no sêmen como únicos atos sexuais admissíveis”.
“Na Espanha, a Lei Wert eliminou a educação sexual dos colégios”, lembra Vagalume, que além de traduzir e escrever textos sobre sexualidade não-normativa, costuma promover bate-papos e oficinas. “A sexualidade, não digo as práticas sexuais, mas as várias facetas da sexualidade, se converteu em algo que deve ser experimentado na intimidade, enquanto a religião católica é algo público que doutrina milhares de menores todos os anos. Eliminada a Educação para a Cidadania por seus conteúdos relativos à igualdade e à homossexualidade, entre outras coisas, é fácil ver que tipo de futura população espanhola desejam ter”.
Talvez, como esclarece Miguel, os jovens entre 14 e 17 anos não estejam “expostos”, mas acessem livremente os conteúdos que procuram, necessitam ou desejam ver. “Se recebessem uma educação sexual adaptada a sua idade, saberiam diferenciar algo que, sinceramente, boa parte da população adulta também não sabe distinguir: que a pornografia é ficção. Uma boa educação sexual ajudaria a saber diferenciar entre cinema e realidade, e a disfrutar de ambas as coisas sem misturá-las, assim como podemos ver o Homem-Aranha saltando de uma janela sem por isso supor que as pessoas farão o mesmo”.
“O pornô comercial – analisa Diana Pornoterrorista – é uma forma de manipulação capitalista das pessoas e de suas sexualidades, é um instrumento de controle do Estado, que acaba ditando o que se pode fazer na cama, sempre jogando com estas dinâmicas de frustração que a ficção do pornô gera nas pessoas”. Quando acontecem, na pornografia, coisas “que não se ajustam a essas dinâmicas capitalistas, binaristas e frustrantes”, como ocorreu no Reino Unido, “o Estado se preocupa”.
Os filmes de Erika Lust se distanciam da heteronormatividade e colocam o foco da excitação em um lugar mais real e não-sexista do que o pornômainstream. Ela, além de produtora e empresária, é mãe de duas filhas. “O problema não está somente no fato de que crianças e adolescentes, hoje em dia, frequentemente recebem toda a sua educação sexual por meio da pornografia, mas de certo tipo de pornografia. Não seria melhor se recebessem aulas boas no colégio, nas quais também se falasse sobre igualdade, sobre sentimentos, sobre atitudes, além de ensinar estritamente o aspecto físico? Isso sim teria um efeito sobre a indústria, porque criaríamos consumidores mais críticos e informados, com gostos mais diversificados, que não estariam expostos unicamente aos gostos dos homens de meia idade que ainda dominam o setor e impõem um discurso sobre gênero absolutamente machista, apresentando imagens corporais que não têm nada a ver com a realidade e fazendo-os crer que determinadas atitudes são aceitáveis. Sou uma firme defensora da educação, antes da regulamentação”.
Myles Jackman e Jerry Barnett, do site Sex and Censorship, assumiram a palavra durante o ato dos caras-sentadas em Westminster. Barnett opina que a censura não se limita exclusivamente à pornografia e que não se trata apenas de que o governo britânico não queira que seus cidadãos consumam certo tipo de pornô. Para ele, quando se aplica a censura sobre o pornô, trata-se da primeira fase, do primeiro aviso quanto a uma escalada da censura na Internet.
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O criador de Golfxs com Princípios compartilha desta opinião. “Meu ponto de vista é o de que ainda estamos sob o tsunami iniciado na época de Reagan, Thatcher e João Paulo II, e que nos vai tirando pouco a pouco o que foi conquistado nos anos 60 e 70. E esta censura e retrocessos ocorrem e seguirão ocorrendo tanto na Internet, quanto fora dela. Direitos trabalhistas e civis, liberdades e serviços públicos vão desaparecendo em uma mudança paulatina de mentalidade”.
“Censurar atos consentidos entre adultos não parece ser a melhor forma de reforçar os direitos civis, não acha?”, reforça Erika Lust. “Não vivemos bons tempos para a liberdade de expressão na Internet, tanto na pornografia, quanto fora dela”.
“O que é verdadeiramente prejudicial – conclui Diana – é a irresponsabilidade dos Estados ao lidar com a educação sexual das pessoas. É mais fácil censurar se apoiando na ideia de que estão nos protegendo, do que fornecer às pessoas informação verdadeira sobre seus corpos ou deixar de silenciar e manipular questões como a ejaculação feminina. Aos sistemas patriarcais é aterrorizante a ideia de que as pessoas vivam seus corpos e desfrutem deles autonomamente, e esse fato é uma pista muito boa de como poderíamos armar a revolução, a verdadeira”.
Tradução: Henrique Mendes
Nota da Redação: Matéria original publicada no El Diario, site de notícias espanhol que cobre política, economia e sociedade.
Acesse no site de origem: Para ativistas, restrições a pornô no Reino Unido refletem concepção machista da sexualidade (Opera Mundi, 27/12/2014)