O que a socióloga francesa Alizée Delpierre descobriu ao viver nas casas dos milionários — e como isso se conecta com a realidade brasileira
A socióloga francesa Alizée Delpierre decidiu realizar uma pesquisa pouco convencional: se infiltrou em lares de famílias milionárias na Europa para entender, por dentro, como funcionam as relações de trabalho doméstico em ambientes de extremo luxo. Durante anos, atuou como babá e ajudante de cozinha, entrevistou empregadas e observou o cotidiano das famílias empregadoras.
O resultado dessa imersão é o livro Servir les riches – Les domestiques chez les grandes fortunes (Servir aos Ricos – O trabalho doméstico nas casas de milionários, em tradução livre), ainda sem edição em português.
A obra é fruto de anos de entrevistas, observações etnográficas — tipo de estudo em que o pesquisador acompanha e participa do cotidiano das pessoas que está investigando — e experiências diretas como trabalhadora em casas da elite aristocrática europeia.
O que Delpierre descobriu foi o que chamou de “exploração dourada”: as funcionárias domésticas recebem bons salários, ganham presentes e vivem em mansões, mas enfrentam jornadas exaustivas, pouco descanso e controle constante sobre suas vidas. Mesmo com esse “brilho por fora”, a desigualdade e a subordinação permanecem.
Além disso, a autora observou que mulheres negras são frequentemente preferidas para cuidar das crianças, repetindo estereótipos racistas herdados do período colonial. Já os cargos mais valorizados costumam ser ocupados por pessoas brancas europeias.
A realidade brasileira
No Brasil, o cenário é ainda mais alarmante. O trabalho doméstico é realizado majoritariamente por mulheres negras e de baixa renda, uma herança direta da escravidão.
Segundo dados do Ipea (2020), menos de 30% das trabalhadoras têm carteira assinada, o que as deixa sem acesso a direitos como férias, 13º, FGTS e aposentadoria.
Mesmo com avanços legislativos importantes, como a PEC das Domésticas, aprovada em 2013 durante o governo de Dilma Rousseff, a informalidade e a precarização ainda predominam. A emenda garantiu igualdade de direitos entre empregadas domésticas e os demais trabalhadores formais, incluindo jornada de 44 horas semanais, pagamento de horas extras, adicional noturno, seguro-desemprego e FGTS obrigatório.
Foi uma conquista histórica, mas a resistência de parte das elites e os entraves sociais e institucionais seguem dificultando sua plena implementação.
O simbolismo político da Convenção 189
Em abril de 2016, enquanto o processo de impeachment de Dilma avançava no Congresso Nacional, o governo federal realizou em São Paulo a cerimônia de envio da proposta de adesão à Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Essa norma internacional estabelece padrões mínimos para o trabalho decente no setor doméstico e visa combater a exploração e a informalidade globalmente.
O evento ocorreu em 29 de abril, apenas doze dias após a Câmara Federal aprovar a abertura do processo de impeachment da presidenta, e ganhou um tom de resistência política e simbólica. Ali estavam ministros, lideranças sindicais e movimentos sociais, mas foi a fala de Creuza Oliveira, presidenta da Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas), que sintetizou o peso histórico daquele momento.
“Durante mais de 500 anos o país foi governado por senhores de engenho. Não é em 12 anos que se muda essa realidade. Doméstica ter acesso a hora extra, adicional noturno? A elite que mantinha trabalhadoras 24 horas por dia, sem direitos, não aceita isso. O que vivemos hoje é o acesso à dignidade”, afirmou.
As palavras de Creuza seguem atuais e revelam uma verdade incômoda: a ampliação de direitos trabalhistas no Brasil, especialmente para grupos historicamente marginalizados, enfrenta resistência intensa das elites econômicas e políticas. Qualquer tentativa de romper com os privilégios estruturais — especialmente no espaço doméstico, tradicionalmente marcado por desigualdade, racismo e patriarcado — é percebida como ameaça.
A adesão à Convenção 189, embora de grande valor simbólico, foi ofuscada pelo clima de ruptura institucional que antecedeu o impeachment da primeira mulher presidenta do Brasil.
Os avanços promovidos pelo governo Dilma — como a PEC das Domésticas e o reconhecimento formal do trabalho doméstico como profissão com plenos direitos — tornaram-se alvos de ataques conservadores, reforçando a ideia de que o Estado estaria “exagerando” ao promover justiça social. Essa disputa material e simbólica foi um dos elementos que alimentaram o ambiente político que levou à sua destituição.
O caso de Madalena Gordiano: a escravidão que resiste
O caso de Madalena Gordiano, resgatada em novembro de 2020 em Patos de Minas (MG), se tornou símbolo nacional e internacional da persistência do trabalho escravo doméstico no Brasil.
Madalena foi entregue, ainda criança, a uma família rica sob a promessa de receber educação. Na prática, foi transformada em empregada doméstica sem salário, sem acesso à escola, sem folgas e sem qualquer vínculo formal de trabalho.
Por quase 40 anos, viveu confinada em um quarto sem janelas, sob vigilância constante, sem autonomia. Só conseguiu escapar quando, já com 46 anos, escreveu bilhetes pedindo socorro e os jogou pela janela, sendo resgatada após mobilização de vizinhos e atuação do Ministério Público do Trabalho, Polícia Federal e Auditoria Fiscal do Trabalho.
Os responsáveis foram identificados como Dalton César Milagres Rigueira, professor de Medicina do Unipam, e sua mãe, Dalva Maria Ferreira. Segundo a investigação, se apropriaram indevidamente de pensões do INSS em nome de Madalena, que jamais teve acesso ao dinheiro.
A Justiça determinou indenização superior a R$ 800 mil por danos morais, salários não pagos e verbas rescisórias. Dalton foi demitido da universidade e responde a inquérito criminal por trabalho forçado, apropriação de benefícios e redução à condição análoga à escravidão — mas ainda não houve condenação criminal definitiva.