A luta contra a terceirização não deve arrefecer, em face da aprovação da Lei 13.429. Trata-se de uma luta contra a intermediação da força de trabalho, que tem sido utilizada como subterfúgio para a subtração de direitos, dentre os quais está a vedação ao trabalho infantil.
(Carta Capital, 26/04/2017 – Acesse o site de origem)
A aprovação dessa lei, cujo projeto datado de 1998 foi desengavetado e aprovado às pressas, num claro golpe ao processo legislativo que se desenvolvia em torno do PLC 30, e como forma de impor algo claramente rejeitado pela sociedade, em todas as discussões e audiências públicas realizadas sobre o tema, apenas reacende a necessidade de falar abertamente sobre as consequências dessa opção social.
A terceirização é definida como uma técnica empresarial que promove o “enxugamento” da empresa, através do repasse de parte das atividades, para que possa haver maior dedicação à finalidade social do empreendimento. Outra daquelas mentiras que nos repetem todos os dias, mas que nem por isso se tornarão verdade. Basta ver a proposta contida no substitutivo ao PL 6787, que altera redação da recém aprovada Lei 13.429, para dispor que as empresas podem terceirizar qualquer atividade, todas as suas atividades. Ou seja, não se trata de especialização, trata-se de atravessamento, com o escopo exclusivo de redução de custos.
Segundo a pesquisadora Patricia Galvão, da Unicamp, terceirização tem raça e gênero: os serviços de limpeza e manutenção, por exemplo, mantém a maioria absoluta de mulheres negras como empregadas. Trata-se da reprodução de uma cultura que admitiu (e em certa medida ainda admite) a escravidão e que é pautada pela ideia de que as mulheres são mais aptas às tarefas domésticas.
Dados revelados por uma pesquisa do Sindicato das Empresas de Asseio e Conservação do Estado do Rio de Janeiro apontam que 92% dos trabalhadores nos serviços de limpeza terceirizados são mulheres, enquanto 62% são negros. Dados do Instituto de Pesquisa Econômicas Aplicadas apontam que, em 2009, existiam 7,2 milhões de brasileiros trabalhando na limpeza, cozinha e manutenção de casas e escritórios, dos quais 93% do total (cerca de 6 milhões) eram mulheres e 61,6% do total (4 milhões) eram negros e negras. A taxa de desemprego em 2009 era de 12% entre mulheres negras, comparada a 9% para mulheres brancas, 7% para os homens negros e 5% para homens brancos. De acordo com o o mesmo instituto, IPEA, em 2011 a taxa de escolarização de mulheres brancas era de 23,8%, enquanto entre mulheres negras era de apenas 9%.
Nesse mesmo ano, a renda média das mulheres negras era equivalente a 30,5% da renda percebida pelos homens brancos. Por fim, a Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) de 2013, aponta que 70,6% das mulheres negras que trabalham nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador, São Paulo e Distrito Federal estão nos setores de serviços, na sua enorme maioria já como terceirizadas. Nos serviços de telemarketing a escolha de mulheres, negros e negras, para o trabalho, é por vezes justificada pela invisibilidade que esse trabalho promove. Longe dos olhos do consumidor, a atendente não precisa preencher o requisito perverso e racista da “boa aparência”.
E não é só isso. A terceirização também tem sua predileção por crianças. No último Relatório Mundial sobre o Trabalho Infantil, publicado pela OIT, há referência à direta ligação entre pobreza e trabalho infantil. A precarização das condições de vida e dos vínculos de trabalho é determinante, portanto, para impedir que a retórica de proteção se torne realidade. Em um país sem garantia de emprego, como o Brasil, no qual (de acordo com pesquisas oficiais) cerca de doze milhões de pessoas trabalham em empregos precários, como terceirizados, é evidente o estímulo à exploração de crianças e adolescentes.
Os dados oficiais do governo referem que existiam 486 mil crianças de 5 a 13 anos trabalhando no Brasil em 2013.
Esses números certamente não contemplam as crianças e adolescentes que trabalham de modo informal na exploração de minérios, no corte e cana de açúcar, em trabalho doméstico ou na fabricação de roupas e calçados.
A admissão da lógica do trabalho infantil, pelo Estado, representada de forma emblemática pela autorização da exploração gratuita de crianças na Copa do Mundo de 2014, é sintomática desse movimento de retrocesso social, pelo qual aceitamos retornar ao século XVIII, e novamente admitir a presença de atravessadores na relação de trabalho. Na época, crianças a partir de 12 anos foram autorizadas a trabalhar (por vezes como voluntários) na venda de bebidas e alimentos durante os jogos ou no recolhimento do lixo produzido nos estádios.
O efeito potencializador que a terceirização tem, para a exploração de trabalho infantil, é evidenciado pelo expressivo número de empresas internacionais que já foram autuadas pela constatação da prática de trabalho infantil em “cadeia produtiva”., ou seja, em suas prestadoras de serviços. Samsung, Nike, Le Lis Blanc, Zara, M. Officer, BV Financeira são apenas alguns dos nomes de empregadores já flagrados explorando trabalho infantil por meio de interpostos.
No documentário Favela Fábrica, as entrevistas e visitas às residências das trabalhadoras revela a facilitação do trabalho infantil, através da contratação irregular e por produção. As trabalhadoras hiper-exploradas colocam os filhos pequenos a costurar, colar, cortar, para aumentar a renda da família, pois os valores pagos pelo trabalho são irrisórios. A chamada “costura doméstica”, realizada em ambientes clandestinos, tem sido uma das atividades que mais propicia a ocorrência de trabalho infantil. É parte da chamada “terceirização externa”, que ao permitir e estimular a exploração de força de trabalho fora do ambiente da fábrica, viabiliza essa triste realidade.
Um estudo do Instituto Observatório Social revelou recentemente que a Faber-Castell, a Basf e a ICI Paints estavam envolvidas na cadeia de exploração de mão-de-obra infantil, porque compram talco das empresas Minas Talco e Minas Serpentinito, que utilizam crianças na mineração da pedra-sabão, na Mata dos Palmitos, em Ouro Preto (MG). O estudo descobriu crianças a partir dos cinco anos de idade trabalhando nas jazidas, carregando pedras de até 20 quilos e esculpindo pedra-sabão: “cortam, talham e lixam o minério”.
A Comissão para Erradicação do Trabalho Infantil da Justiça do Trabalho – CETI chegou a divulgar uma nota de repúdio à exploração do trabalho adolescente em condições análogas às de escravo, quando da última notícia de caso envolvendo a rede de Lojas Le Lis Blanc, conclamando a sociedade e os juízes do trabalho a mobilizarem-se “contra as diversas formas de precarização do trabalho, em especial a terceirização “desenfreada”:
“Se o trabalho infantil e o trabalho escravo podem, ainda, soar distantes e irreais para os juízes do trabalho, a terceirização, quarteirização e precarização das relações de emprego é o nosso dia a dia, nossa realidade a cada processo, a cada audiência. Nenhum magistrado trabalhista brasileiro poderá negar a presença, existência e os danos causados por estas formas de trabalho. (…) Os juízes do trabalho, mesmo que não queiram enxergar o trabalho infantil, não conseguem deixar de ver a terceirização e a precarização das relações de trabalho, especialmente em vias de votação do Projeto de Lei 4330/2004, que trata da terceirização – que, se aprovado, será a porta aberta para que casos como o noticiado virem muito mais do que notícia: virem rotina”.
A relação entre terceirização e a precariedade do trabalho feminino, bem como exploração do trabalho infantil, não deve espantar. Historicamente, o capital nunca se opôs ao trabalho infantil, assim como também nunca se opôs à terceirização. A limitação da idade para o trabalho e para a assunção de responsabilidade penal foram conquistas duramente arrancadas do sistema. Exemplo disso é o fato de que o trabalho a partir dos onze anos em regime de 56 horas semanais foi defendido por Jorge Street, o primeiro diretor do Departamento Nacional do Trabalho no Brasil, quando da criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em 1931. Em sua manifestação, Street referia que “seus trabalhadores”, sujeitos a jornadas de dez horas, saíam do trabalho “marchando firmes e bem dispostos”, nunca se queixavam desse regime de trabalho, nem participaram da greve geral daquele ano. Acrescentou que os trabalhadores “aceitaram com prazer o trabalho em horas suplementares, que, naturalmente, lhes proporcionava um excedente de ganho”.
Jorge Street era considerado um industrial com muita consciência social, porque instituiu benefícios para seus quase quatro mil operários e fez uma vila operária para que residissem, na qual havia intensa prática religiosa e disciplina de caserna, com toque de recolher. Especificamente sobre a exploração de crianças, Street observou que retirá-las do trabalho significaria deixá-las “ao abandono, entregues a si mesmas, nas ruas, à disposição de todas as seduções e de todos os vícios”.
Admitia empregar cerca de 300 crianças entre 11 e 15 anos, em regime de 10 horas de trabalho por dia, muitas vezes a pedido dos pais, para que pudessem complementar a renda ou evitar o abandono. As crianças podiam “até fazer lanche durante o trabalho” e mesmo sentar para descansar de vez em quando. Ao fim da jornada, as crianças saíam das fábricas “em revoada alegre e gritante, correndo e brincando”. Street chegou a afirmar: “Defendo, ainda, que a criança brasileira é mais precoce. Esse fato, somado à ausência de incentivo para ir à escola, torna necessária autorização do trabalho a partir dos onze anos. As crianças suportam perfeitamente bem, por exemplo, cinco horas de trabalho seguido. A partir dos 14 anos, o trabalhador já deve ser considerado adulto”.
O pressuposto dessa defesa (declarada ou disfarçada) do trabalho infantil e precário é a ideia de que existem tipos diferentes de seres humanos. As mulheres da classe média ou alta devem atender ao padrão “bela, recatada e do lar”. Algumas até podem ser executivas de sucesso, mas pagarão o preço por isso. Seus filhos devem estudar e se preparar para assumir funções públicas e empreendimentos privados. As mulheres negras e pobres, por sua vez, devem trabalhar 12h consecutivas, em situação de assédio institucional (como ocorre tantas vezes nos ambientes de trabalho em telemarketing) ou na invisibilidade dos serviços de limpeza e conservação. Seus filhos precisam trabalhar desde cedo para auxiliar no sustento da família.
Esse problema é tão antigo, que já aparece n’ O Capital. O trabalho feminino e infantil, segundo Marx, “foi a primeira palavra de ordem da aplicação capitalista da maquinaria”.
O trabalhador, que inicialmente vendia sua própria força de trabalho, com a introdução da máquina na realidade da relação de trabalho, “vende mulher e filho. Torna-se mercador de escravos”.
Ocorre que desde o século XVIII uma farta doutrina de proteção à mulher, à infância e à juventude se desenvolveu, impondo limites à fúria predatória do capital. Trata-se, portanto, de uma escolha social: não viver em uma sociedade de seres humanos que não tenham direito à infância, à maternidade, a condições similares de proteção no ambiente de trabalho. Uma conquista histórica que a disseminação da terceirização vem comprometendo e cujos efeitos deletérios não estão sendo discutidos por quem defende ou mesmo por quem critica a técnica de repasse das atividades da empresa a terceiros, denominada terceirização.
A Constituição de 1988 estabelece claramente o primado dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, a ponto de determinar – em seu artigo 170 – que a própria ordem econômica deve se sujeitar aos “ditames da justiça social”. O art. 7º, inciso I, da Constituição afirma ser direito fundamental dos trabalhadores brasileiros “I – relação de emprego”. Essa é a perspectiva sob a qual a relação social entre trabalho e capital é concebida na ótica constitucional. Ao contrário do que ocorreu no passado, hoje a linguagem jurídica constitucional repudia a terceirização sob qualquer modalidade, assim como repudia o trabalho infantil ou a discriminação de gênero.
A conclusão necessária, portanto, é a de que o Direito, enquanto linguagem jurídica do capital, avançou em sentido oposto àquele pretendido pelo discurso da terceirização. Qualquer regulamentação da interposição de sujeitos na relação de emprego, seja sob que denominação for, implica retrocesso social. Esse discurso constitucional, mesmo naquilo que possui de retórico ou utópico, deve constituir o ponto de partida para a aplicação e a compreensão do Direito do Trabalho.
A luta pelo trabalho decente, pela melhoria das condições sociais, por uma sociedade minimamente melhor, passa pela rejeição plena e radical de qualquer forma de atravessamento na relação entre capital e trabalho.
Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.