Trabalho escravo: 83% das mulheres resgatadas no Brasil estão no meio rural

09 de dezembro, 2025 Repórter Brasil Por Vinícius Konchinski

Dados oficiais compilados pela Repórter Brasil sobre fiscalizações realizadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, entre 2003 a 2023, mostram que pecuária, produção de café e de carvão vegetal lideram casos de trabalho análogo ao de escravo no país

Elisabeth Vitor tem 59 anos e trabalha desde os oito em lavouras do sul de Minas Gerais. Plantou feijão, colheu cana-de-açúcar e, principalmente, café. Em mais de cinco décadas, contudo, só tem três registros na carteira de trabalho. Todos temporários.

“Eu nasci 78 anos depois da Lei Áurea, mas parece que a liberdade não chegou para mim”, reclama. “Trabalhei em troca de roupa velha nem sei quanto tempo. E preciso continuar trabalhando porque até agora não consegui aposentadoria nenhuma.”

Ela tem certeza de que já foi escravizada em atividades rurais no país, mas nunca chegou a ser resgatada por auditores-fiscais do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) . O conceito de “resgate” compreende não só o pagamento de direitos trabalhistas, mas também o encaminhamento para políticas públicas de assistência social.

Elizabeth não aparece nas estatísticas das 1.857 mulheres —69% delas negras (pretas ou pardas)— libertadas no meio rural entre 2003 e 2023, segundo dados oficiais do governo federal acessados por meio de LAI (Lei de Acesso à Informação) e sistematizados pelo Projeto Perfil Resgatado, da Repórter Brasil.

O ambiente rural é de longe o que concentra o maior número de casos de mulheres submetidas a trabalho análogo ao de escravo, como define o artigo 149 do Código Penal. Ao longo de 21 anos, 83% das 2.244 resgatadas exerciam alguma atividade no campo.

Minas Gerais, terra de Elizabeth, é o estado com maior número de resgates de trabalhadoras rurais: 436 em 21 anos, o que corresponde a 23% do total.

“As atividades que envolvem trabalho análogo à escravidão geralmente envolvem também o tráfico de pessoas e a atração de migrantes para os ambientes de trabalho degradante. Os homens estão mais disponíveis para mudanças. Mas há mulheres se mudando também, que acabam escravizadas”, afirma o auditor fiscal Marcelo Gonçalves Campos, da Coordenação-geral de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Análogo à Escravidão e do Tráfico de Pessoas do MTE.

Dados da Contar (Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais) indicam que o Brasil tem cerca de 12 milhões de pessoas em atividade no campo. Cerca de 12% deles são mulheres. Na média dos 21 anos cobertos pelo Projeto Perfil Resgatado, menos de 7% dos trabalhadores rurais resgatados no meio rural brasileiro são do sexo feminino.

“No caso das mulheres, o trabalho análogo à escravidão é ainda mais cruel”, analisa Lívia Miraglia, advogada e coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). “Isso porque pode envolver casos de assédio e até violência sexual”, complementa.

“Trabalhei muito tempo segurando o xixi para não precisar ir ao banheiro porque não me sentia segura”, confirma Elizabeth. “Tem mulher que evita tomar água para não correr o risco de ser violentada ao ir em um banheiro compartilhado com homens.”

Pecuária lidera casos

A pecuária concentra 21% dos casos de trabalho escravo feminino no Brasil, considerando tanto os resgates feitos no meio rural quanto os no meio urbano. São 471 casos em 21 anos. Miraglia diz que esse dado indica que trabalhadoras do sexo feminino são escravizadas exercendo os mais diversos tipos de atividade, inclusive aquelas que tradicionalmente seriam feitas só por homens. “Tem muita mulher tocando boi Brasil afora”, exemplifica.

Para a professora, os resgates nesse ramo de atividade revelam também um traço típico: a mulher que vai acompanhar o marido no trabalho e acaba escravizada. “Tem mulher resgatada em fazenda cozinhando para trabalhadores, limpando alojamento ou cuidando de criança sem receber nada por isso. E depois dessa jornada ainda tem que cuidar dos afazeres familiares”, explica.

Antonio Carlos Avancini, auditor que fiscaliza o trabalho rural há mais de 20 anos, acrescenta que em fazendas de gado do Pará e Tocantins foram encontradas mulheres roçando palmeiras do tipo juquira de áreas de pasto recém-desmatadas. “É um trabalho árduo, bruto, e que mulheres faziam sem nem receber por isso”, conta.

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