(El País, 30/09/2014) Todos os presidenciáveis estão escorregando numa grande hipocrisia em relação ao casamento de pessoas do mesmo gênero, gays ou lésbicas, por medo de perderem votos entre católicos e evangélicos. Uma hipocrisia que é uma contradição com os novos caminhos que o papa Francisco, por exemplo, está abrindo na Igreja Católica, ao se tornar o primeiro sucessor de Pedro a admitir: “Quem sou eu para julgar os homossexuais?”.
Os candidatos se escudam no medo de perder os votos de católicos e evangélicos, e assim parecem temerosos de revelarem o que fariam, se conquistarem a Presidência, com um tema tão delicado e atual como o do novo tipo de família que está nascendo no mundo, no qual uma criança pode ter dois homens como pais ou duas mulheres como mães.
O Brasil é um país fundamentalmente crente e concretamente cristão, já que católicos e evangélicos, somados, constituem 80% da população. E não se pode ignorar – como sabe muito bem, por exemplo, a candidata Marina Silva, que já foi católica e hoje é evangélica pentecostal – que todas essas Igrejas, chamem-se protestantes ou evangélicas, têm suas raízes e origens no cristianismo. O “Livro” de ambas as confissões é a Bíblia, o Antigo e o Novo Testamento. E o personagem que as Escrituras anunciam é Jesus de Nazaré, o profeta revolucionário e dotado de compaixão, mais misericordioso que uma mãe, como já anunciava antes de sua existência o profeta Isaías.
No caso do papa Francisco, ele sacudiu o velho destempero da Igreja Católica contra os homossexuais ao retornar às origens históricas do cristianismo e aos escritos dos Evangelhos, quando declara que não os julga. Foi ele também quem pela primeira vez lembrou à Igreja que hoje, na sociedade moderna, existem “novas formas de família”, referindo-se tanto às uniões dos divorciados como às dos homossexuais.
Isso fez os teólogos pensarem que o papa Francisco poderia estar cogitando a hipótese de autorizar a Igreja a “abençoar” também uniões que não sejam as tradicionais entre homem e mulher, mas que desejem se transformar em verdadeiros lares, onde meninos e meninas adotados possam ser acolhidos como filhos.
Toda a grande discussão na Igreja sobre a possibilidade ou não de conceder o sacramento do matrimônio a casais do mesmo sexo apoiou-se até agora no fato de que, para ela, tais casais ou famílias podem gozar de todos os direitos civis dos casais ditos “normais”, mas sem poder receber o sacramento ou a bênção da Igreja. Alegam que o sacramento cristão do matrimônio foi legislado em toda a tradição da Igreja só para abençoar e consagrar a união entre um homem e uma mulher.
É verdade isso? Historicamente, não. O conceito de sacramento na Igreja nasce muito tarde: no século XII. Decorre de uma ideia mais jurídica e de controle de poder do que das origens do cristianismo.
São Bernardo, no século XII, reconhece só três sacramentos, e no século XIV, em vez dos sete atuais, existiam até 30, entre eles o simples enterro de um cristão.
Não existe nenhuma certeza de que Jesus instituíra ou reconhecera o sacramento do matrimônio. E, dos sete sacramentos atuais, o matrimônio é o mais fácil de ser revisto pela Igreja Católica, pelo fato de ser o único sacramento que não é administrado pelo sacerdote ou ministro da Igreja. Desde as origens dos sacramentos, no matrimônio “os que se casam” são os cônjuges. Não é o sacerdote quem os casa, pois ele neste caso é uma simples “testemunha”. Poderiam portanto, teoricamente, se casar perante um leigo e receber igualmente a graça do sacramento. Algo que não ocorre com os outros sacramentos, com o que não existiriam nem a eucaristia nem a penitência. Durante muitos séculos, os cristãos que desejavam se casar se limitavam a avisar a comunidade, sem necessidade de irem até um sacerdote ou bispos.
Ou seja, na Igreja, o sacerdote possui o poder, por exemplo, de consagrar ou de perdoar pecados, mas ele não casa ninguém. São os noivos que se casam e de alguma forma se administram entre si o sacramento.
Tudo isso para entender como a abertura do papa Francisco, eliminando incrustações do poder temporal herdadas de quando os imperadores romanos transformaram a Igreja, antes perseguida, em braço armado do seu poder, tenta devolvê-la à simplicidade de suas origens. Por isso, poderia muito bem chegar a aceitar o sacramento do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, se seus protagonistas forem considerados cristãos e desejarem iniciar a formação de uma família com a bênção sacramental da Igreja.
Os hierarcas católicos e evangélicos deveriam analisar seus preconceitos contra o matrimônio religioso dos gays e lésbicas à luz dessa nova abertura que começa a se dar no próprio coração do cristianismo.
Francisco, o papa de quem se diz ser o personagem que hoje mais recorda o profeta Jesus de Nazaré em sua ideia de compreensão e amor universal, que abraça todas as diferenças não só de gênero, mas também, inclusive, de credo religioso, está escandalizando uma parte da Igreja tradicional para a qual continua sendo mais importante o Direito Canônico, a lei, do que a misericórdia que goteja dos evangelhos. Uma misericórdia que o fundador do cristianismo, em quem hoje continuam se inspirando católicos e evangélicos, ostentava ao se misturar a toda a ralé do seu tempo, a todos os desprezados por serem diferentes, das prostitutas às adulteras.
“Ninguém te condena?”, disse ele à mulher flagrada em pleno adultério e arrastada até ele, porque a lei exigia que fosse apedrejada. “Ninguém, rabino.” E Jesus: “Pois eu tampouco te condeno. Vá em paz”.
Se Jesus perdoou uma mulher que tinha cometido adultério e chegou a exaltar as prostitutas, escandalizando os doutores da sua Igreja, negaria hoje a bênção ou o sacramento do matrimônio a dois homens ou duas mulheres que de coração e por amor desejem criar uma família?
Estamos, portanto, do ponto de vista do medo dos presidenciáveis de se comprometerem com o tema dos homossexuais, perante uma hipocrisia e até uma desinformação sobre os novos caminhos que a própria Igreja Católica está abrindo neste momento.
E os evangélicos deveriam recordar – já que eles também têm Jesus como referência, possivelmente até mais que os católicos, pois escrevem seu nome em todas as partes, até na traseira dos caminhões – que esse Jesus era o amigo de todos os diferentes e perseguidos, que abençoava o amor que fosse, sem distinções de gênero, e não negava sua bênção a ninguém.
Sua única lei era o “amai-vos”; sua única constituição, a indulgência; e seu credo, o perdão. Seu maior adversário foi o poder do seu tempo, que o crucificou por não suportar que abençoasse aqueles que a sociedade segregava, abandonando-os nas sarjetas do esquecimento.
Hoje, Jesus estaria ao lado e contra qualquer discriminação de gênero. Que não se esqueçam disso os crentes, nem aqueles que nestes dias brigam para tomar em sua mão o centro do poder. E ainda mais se esses candidatos já passearam por templos e catedrais se ajoelhando para serem abençoados, na esperança de não perder ou de ganhar votos.
Esse Jesus, venerado em igrejas e templos, cunhou uma frase terrível contra os hipócritas de plantão, que continua ressonando atual, 2.000 anos depois. Chamou-os de “lobos em pele de cordeiro”.
Acesse no site de origem: A hipocrisia dos candidatos à presidência frente ao casamento gay, por Juan Arias (El País, 30/09/2014)