Incoerência de gênero, por Flávia Oliveira

07 de setembro, 2014

(O Globo, 07/09/2014) Há três mulheres na corrida presidencial de 2014: Dilma Rousseff (PT), Marina Silva (PSB) e Luciana Genro (Psol). A um mês das eleições, pesquisas de intenção de voto sugerem que duas disputarão o segundo turno, o primeiro da História sem a presença masculina. Também inédita no pleito será a participação de brasileiras entre os votantes. São 74,4 milhões de eleitoras, 52% do total. O trio de fatos nunca antes observados, contudo, não pôs sob os holofotes a agenda feminina. Mazelas tão graves quanto antigas, caso da desigualdade de gênero no mercado de trabalho, da violência doméstica e da restrição de direitos sexuais e reprodutivos, seguem no escuro. Numa evidente incoerência, estão distantes dos debates, da propaganda eleitoral e das entrevistas das candidatas.

As presidenciáveis gastam tempo e palavras enfileirando problemas do Brasil, sem fazer referência aos dramas cotidianos de um eleitorado predominantemente feminino. A oferta de vagas em creches e na pré-escola aparece em questionamentos sobre educação, como se não estivesse relacionada também à inserção das mães no mercado de trabalho. A falta de políticas públicas de atenção aos idosos é outro entrave à ascensão profissional das mulheres, culturalmente atreladas ao papel de cuidadoras.

A distância salarial dos homens, bem como a rara presença feminina no topo da hierarquia de empresas públicas e privadas, é outra lacuna do debate eleitoral. Na última década, o rendimento médio delas, que têm escolaridade maior, não saiu da faixa de 70% da remuneração masculina. Nas seis maiores regiões metropolitanas do país, segundo o IBGE, há 10,524 milhões de mulheres trabalhando; 7,274 milhões (69%) têm 11 anos ou mais de estudo. Entre os homens, são 7,625 milhões (61%) em 12,464 milhões de ocupados.

Falta falar da infinidade de lares chefiados por mulheres, mais de um terço do total, e do quanto eles estão mais expostos à pobreza. Casos de crimes sexuais e violência doméstica também são crescentes e, até aqui, não apareceram no discurso das candidatas. Tampouco a regulamentação do trabalho doméstico, ocupação predominantemente feminina. “A vida das mulheres de baixa renda e da classe média foi profundamente afetada pela PEC das Domésticas, mas o assunto não está na campanha”, sublinha Rosiska Darcy, do movimento Rio Como Vamos.

As candidatas sequer mencionam os obstáculos que, individualmente, precisaram superar para estar, agora, na disputa pelo cargo político máximo do país. “As presidenciáveis não estão valorizando essa presença feminina inédita nas eleições. É um cenário interessante, mas que preocupa, pela pouca ênfase no discurso e pela falta de prioridade na agenda”, diz Lucia Xavier, da ONG Criola, de mulheres negras.

No debate da TV Bandeirantes, foi o médico sanitarista Eduardo Jorge, candidato do PV, quem defendeu descriminalização do aborto, proposta encampada também pelo PSOL de Luciana Genro. Cercado de tabus morais e religiosos, o tema esteve, por anos, no topo da agenda do movimento feminista. Em outras eleições, gerou polêmica. Talvez, por isso, raciocinam Rosiska Darcy e Lucia Xavier, tenha entrado no rol de omissões das candidatas e ajudado a soterrar outros temas de interesse feminino.

Há tempo de desenterrá-los, pelo bem das mulheres do Brasil, que poderão, não apenas ganhar, mas também decidir a eleição.

Acesse o PDF: Incoerência de gênero, por Flávia Oliveira (O Globo, 07/09/2014)

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