(Último Segundo, 20/11/2014) No Dia da Consciência Negra, Luiza Barrios, ministra da Promoção e Igualdade Racial (Seppir), fala ao iG sobre racismo, cotas e preconceito.
Quando aceitou o convite da presidente Dilma Rousseff em 2011 e assumiu o cargo de ministra da Promoção e Igualdade Racial (Seppir), a gaúcha Luiza Barrios já tinha 32 anos de atuação no movimento de defesa ao negro.
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Ela começou em 1979, quando ingressou no Movimento Negro Unificado (MNU), em Salvador após concluir o curso de Administração Pública e Administração de Empresas, na Universidade Federal do Rio Grande de Sul.
No MNU, foi eleita em 1991 a primeira coordenadora nacional da organização, cargo que exerceu até 1994.
Antes de assumir o ministério, Luiza ainda comandou a Secretaria de Promoção da Igualdade do Estado da Bahia (SEPROMI), que tratava de políticas para mulheres e de igualdade racial. Sua experiência no movimento negro inclui ainda a criação do Projeto Raça e Democracia nas Américas, em parceria com a organização norte-americana Conferência Nacional de Cientistas Políticos Negros, na Universidade Federal da Bahia, onde atuou como pesquisadora.
Nestes 32 anos, a ministra avalia que uma das principais conquista do movimento negro foi levar a questão racial para um cenário nacional e conquistar direitos como a criação da lei anti-racismo, na Constituição de 1988, e a implementação da Seppir, em 2003, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A ministra conversou com o iG sobre o racismo, as cotas e a situação da mulher negra na sociedade brasileira.
iG: A senhora sempre teve a atuação ligada ao movimento de defesa ao negro no Brasil. O que mudou desde 1979, quando a senhora começou a sua militância?
Luiza Barrios: Mudou muito. No início do movimento negro contemporâneo, que se deu na segunda metade dos anos 1970, o que se colocava era a necessidade de se transformar a questão racial em uma questão nacional. Isso foi conseguido, na medida em que hoje no Brasil, essa questão racial faz parte do debate público. Ao longo do tempo, uma legislação foi criada para dar respaldo da definição da Constituição de que o racismo é um crime. Por outro lado, o governo assumiu a sua responsabilidade em combater os efeitos do racismo sobre a parcela negra da população com a criação da Seppir. Tem a questão colocada para além do movimento negro, não apenas no Poder Executivo, mas também no Judiciário, no Executivo. Todos os poderes envolvidos em debates e decisões relativas a esse tema.
O que mudou em relação ao negro desde que a secretaria foi criada, em 2003? Quais os avanços promovidos pela secretaria?
São muitos. A Seppir foi, ao longo do tempo, se consolidando porque era uma estrutura nova dentro do governo. Ela nasceu com a função de articular ações dentro do governo e isso eu considero novo dentro da administração pública. A Secretaria foi criando as condições necessárias para o seu funcionamento, como a definição de uma politica nacional de promoção da igualdade racial, a existência das conferências nacionais, como fórum de consulta para o estabelecimento de diretrizes para essa política. Teve ainda um trabalho bastante ativo no processo de aprovação pelo Congresso Nacional do Estatuto da Igualdade Racial. Com a aprovação do estatuto, foram criadas condições que nós precisávamos para consolidar essa pauta dentro do governo. Foi possível criar o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, que define melhor as competências das três esferas na execução da política nacional. Mais do que isso, o estatuto prevê uma séria de obrigações e dá o caminho para que o setor público assuma determinadas responsabilidades em vários campos da vida social. Tudo que se refere na questão do trabalho, da educação, dos meios de comunicação. Isso facilitou para que nós pudéssemos, em consequência, ampliar a presença da promoção da igualdade dentro do Plano Plurianual do governo, fazendo com que cada vez um número maior de ministérios assuma responsabilidades dentro dessa pauta.
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Os negros ainda têm os empregos com salários menores, são maiorias no sistema penitenciário e minoria nas universidades. Isso prova que existe muito preconceito, mesmo que velado na nossa sociedade. Como coibir isso?
São duas dimensões com as quais a gente trabalha. Uma dimensão é a do enfrentamento ao racismo. Em relação a isso, nós podemos dizer que a sociedade ainda tem muito a fazer para combater esses mecanismos que fazem com que a pessoa negra seja vista como supostamente inferior. A outra dimensão é essa onde o governo atua mais diretamente que é a da igualdade racial, na qual temos feito progressos significativos. Ao longo do tempo aumentou a presença de pessoas negras no ensino superior, as diferenças em termos de escolaridade entre brancos e negros, embora ainda existam, são bem menores do que já foram há 10 ou 15 anos. Por conta das escolhas que o governo fez, do ponto de vista do desenvolvimento do País, tem hoje uma maior presença negra no mercado formal. O que tem de se levado em consideração é que o ponto de partida dos negros, no momento em que essas politicas de inclusão começam a ser adotadas era muito desfavorável. Para que se compensem desvantagens históricas leva um tempo muito maior. Por isso tem se dado uma ênfase muito grande às ações afirmativas para acelerar esse processo de diminuição das diferenças entre brancos e negros. As ações afirmativas que são agora universalizadas, nas universidades federais, nos institutos técnicos, em médio prazo vão causar um impacto positivo do ponto de vista da igualdade. Do mesmo modo que essa última decisão tomada pelo governo de reserva de vagas para negros em concursos públicos também ajuda a aumentar a presença de negros nas posições mais valorizadas do mercado de trabalho.
Movimentos de defesa do negro defendem as cotas, mas elas ainda não são vistas como unanimidade. Um dos argumentos é dizer que ao dar vagas por meio das cotas, você está implicitamente dizendo ao negro que ele não tem capacidade de competir de igual para igual com um branco. Como o Ministério encara essa questão?
Esse tipo de argumento vai sempre existir porque geralmente é colocado por pessoas que não acreditam que o racismo provoca desvantagem na vida das pessoas negras, do mesmo modo que ele cria privilégios para as pessoas brancas. Esse é o ponto de partida principal. Se a pessoa não acredita nisso nunca vai concordar com as cotas, em qualquer setor. Isso é um tipo argumento que a tendência é que com o tempo se desgaste. A adoção das cotas em várias áreas da vida social, especialmente da educação, no ensino superior, tem provado que os estudantes negros não têm diferenças significativas do ponto de vista de desempenho comparativamente aos estudantes que não se utilizaram desse recurso. O outro aspecto é que a cota no ensino superior, por exemplo, não está sendo considerada apenas para negros. A lei define 50% de cotas para egressos da escola publica, e considera qualquer estudante independente do pertencimento racial. Não existe da parte das pessoas nenhum tipo de problema para estudante de escola pública. Então, elas não são contra as cotas como um principio, elas são contra quando as cotas estão vinculadas à população negra.
Quais as diferenças entre racismo e injuria racial? A senhora concorda que a torcedora gremista Patrícia Moreira tenha sido indiciada por injuria racial ao chamar o Aranha, o goleiro do Santos, de macaco?
É uma controvérsia no campo do direito que já dura há algum tempo. Os crimes de injúria são quando a prática racista se dirige a uma pessoa específica e o racismo como crime se caracteriza por ter uma abrangência, é algo que é dirigido a um público mais difuso. Na verdade é algo que tem a ver com um processo de maior debate que nós temos que estabelecer entre os profissionais de direito para que não exista a possibilidade de sistematicamente se colocar como injúria crimes que na verdade são de racismo. No caso da torcedora, era evidente que aquela atitude atingiu a todas as pessoas negras. Mas esse não tem sido o entendimento e nós temos, inclusive, uma dificuldade grande dentro judiciário. Além disso, há um percentual bastante alto de casos que são desconsiderados. Pesquisas mostram menos de 40% dos crimes que são julgados pelos tribunais em 1ª e 2ª instâncias acampados pelos juízes. O resto eles consideram que a denúncia não se sustenta.
As mulheres negras ainda têm um papel subalterno na sociedade brasileira. Frequentemente são retratadas como empregadas domésticas ou “mulata gostosa, produto exportação”. Há algum projeto específico da Secretaria, com foco no empoderamento da mulher negra no Brasil?
De uma maneira geral, se tem uma ideia dessa subordinação das negras, que eu pessoalmente, não subscrevo. Em termos dos progressos feitos pela população negra nos últimos dez anos, chama muito atenção o fato de que as mulheres negras foram efetivamente aquelas que souberam se aproveitar melhor das oportunidades abertas, especialmente na educação. Agora, obviamente, como qualquer outro segmento da população negra, enfrenta o racismo, que contribui para que ela não consiga realizar todo o seu potencial no interior da sociedade. Esse é o primeiro aspecto. A gente tem de sair um pouco desse lugar em que a mulher negra é vista como vítima. Embora efetivamente, ela esteja colocada nas funções de menor salário, ela é uma força muito grande no interior da população negra e é fundamental para puxar para o conjunto da população negra um processo de mobilidade social ascendente.
O que a senhora quer dizer ao afirmar que a mulher negra soube aproveitar melhor as oportunidades?
Elas é que deram os maiores saltos. A proporção de mulheres negras em curso superior entre 2001 e 2012 subiu mais de 100%. Por isso que eu digo que tem um recurso dentro da comunidade negra que está muito atento para as possibilidades de inserção social e econômica na sociedade. A questão do racismo é o que impede que isso se dê de uma forma mais efetiva, de maneira a provocar no conjunto da população negra estímulos mais positivos. Quando você tem um processo de mobilidade social dentro da população negra, a tendência é procurar levar junto com você outras pessoas do grupo familiar. Esse processo do racismo impede um pouco isso porque os obstáculos a que o racismo coloca continuam existindo apesar dessa abertura de oportunidades na direção da igualdade racial.
Quais ações da Secretaria para a mulher?
Nós temos na Seppir um programa chamado Ações Integradas para Mulheres Negras, no qual nós procuramos atuar no sentido de fortalecimento político das mulheres apoiando as iniciativas das organizações de mulheres negras porque são essas organizações que fazem o trabalho de combate ao racismo e ao sexismo. É mais fácil e a apropriado que as organizações da sociedade civil, e não o governo, atuem nessa direção. Tem sido muito importante possibilitar esse apoio para organizações de mulheres para que elas façam o trabalho de empoderamento de outras mulheres negras. Agora, dentro do governo existem vários programas que colocam a mulher como referencia principal. Em um programa como o Bolsa família, a titular do cartão, na maioria dos casos, é a mulher, o programa Minha Casa, Minha Vida se dá preferência à mulher como titular da propriedade, o programa de agricultura familiar tem vertente voltada para as mulheres, que são pequenas agricultoras rurais. Tem uma série de outros programas reforçam esse protagonismo que se atribui às mulheres no processo de inclusão social no Brasil.
Recentemente, ouvimos casos de crianças impedidas de professar a fé em matrizes africanas nas escolas. Um caso recente aconteceu no Rio de Janeiro, quando um aluno foi impedido de entrar na escola com guias de candomblé. Como a senhora vê isso?
Na verdade, é uma decorrência de um processo que tem duas faces. Até pouco tempo vivia-se no Brasil uma situação em que as pessoas que pertencem a essas comunidades de matrizes africanas escondiam a condição para evitar a discriminação, que estava latente. Elas não mostravam suas guias, não usavam roupas, que eventualmente só são usadas quando estão dentro das comunidades. Na medida em que conseguiu fazer crescer um sentimento de orgulho por ser negro, também as pessoas ligadas a essas comunidades passaram a usar publicamente o seu pertencimento. As reações que acontecem a isso demostram o incômodo com o fortalecimento dessa identidade negra. Esse incômodo é demonstrado porque paralelamente tivemos e temos assistido a um crescimento do fundamentalismo religioso. São essas visões fundamentalistas que querem impedir a pluralidade das manifestações culturais. Isso que estamos vivendo no País. Essas são questões que emergem em função da afirmação cada vez maior do negro dentro da sociedade brasileira. Embora pareça contraditório é o problema que decorre do fortalecimento da consciência negra no País. O que importa é que esse problema emerge no momento que temos instrumentos para contrapor a isso.
Quais seriam esses instrumentos?
Você tem organizações negras preparadas para apresentar essas denúncias, para defender os direitos que essas crianças têm de irem para escola do jeito que elas quiserem ir, você tem profissionais negros preparados, profissionais do Direito que desenvolveram varios argumentos na defesa desse direito de manifestação cultural, manifestação religiosa. As coisas acontecem, e são efetivamente problemáticas, mas a nossa capacidade de lidar com elas também aumentou.
Como o preconceito nas redes sociais é encarado pelo Ministério? Há formas de punição? A senhora percebe que esse tipo de preconceito tem uma disseminação mais abrangente na rede?
Nós temos trabalhado com a Polícia Federal, que tem um setor que monitora essas ocorrências dentro das redes sociais. O racismo e a intolerância na rede são crimes novos. Estamos, na sociedade, no governo, aprendendo a lidar com isso. Estamos nos preparando para lançar uma iniciativa nesta direção, de como melhor tratar esses crimes de ódio pelas redes sociais. Neste 20 de novembro, a Seppir, a Secretaria de Direitos Humanos e o Ministério da Justiça estarão lançando uma iniciativa nesta direção. É uma coisa nova, mas é muito importante que a gente tenha essa preocupação. A Polícia Federal tem feito um trabalho bom em relação a isso. As denúncias que recebemos encaminhamos para ela diretamente. O Ministério Público Federal também dispõe de um lugar onde as denúncias podem ser feitas. Vamos ver como a gente vai trabalhando cada vez melhor nisso que é uma coisa nova.
Falando sobre cultura, o iG tem uma pergunta de Aloysio Terra, do grupo Baque Bolado. Segundo ele, o grande responsável pela inserção do negro é a aceitação e o reconhecimento de sua negritude. Essa identificação, diz ele, vem da inclusão de ícones negros e a cultura negra na sociedade. Ele diz, no entanto, que são poucos os projetos que promovem essa inserção de forma popular e gratuita. Ele pergunta se há um projeto integrado entre ministério do Desenvolvimento Social, Ministério da Cultura e Ministério de Promoção da Igualdade Racial, visando a promoção dessas culturas?
Existe sim. Ainda ontem [18], participei na Câmara Federal de uma audiência pública sobre essa questão da cultura e arte negra e o financiamento das iniciativas culturais e artísticas. Uma coisa que se observou foi o seguinte: em primeiro lugar, demos um salto muito grande no sentido de viabilizar recursos que são voltados para o apoio exclusivo de manifestações culturais e artísticas negras. Nós demos início a isso em 2012, em uma parceria da Seppir com o Ministério da Cultura, quando lançamos os primeiros editais voltados para produtores e artistas negros. Isso causou uma polêmica extremamente grande, muita controversa. Ficamos com esses editais embargados pela Justiça por um tempo até que conseguimos provar a importância da democratização aos recursos para cultura. Até porque era possível perceber, ainda não de modo estatístico, mas pela observação empírica, que a maioria dos editais voltados para cultura não conseguiam aprovar projetos de artistas e produtores culturais negros. De lá para cá, quando conseguimos convencer a Justiça de que essa era uma iniciativa legitima, os editais já foram lançados, voltados não só para grupos artísticos, mas para comunidades quilombolas, de matriz africana, ciganos. Acho que nós conseguimos neste último período um avanço muito grande nesta direção. A lei que vai instituir o Pró-Cultura está tramitando na Câmara Federal. Existem setores vinculados à cultura negra que estão acompanhando essa tramitação e com uma disposição muito grande de garantir dentro do Pró-Cultura mecanismos de apoio às expressões, às manifestações culturais e artísticas negras. Acho que é um caminho que já começamos a trilhar.
Ana Flávia Oliveira
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