2/3 dos estupros em SP atingem vulneráveis, aponta levantamento

16 de maio, 2017

Dos 2.667 casos de estupro registrados até março no Estado de São Paulo, dois terços foram de vulneráveis (1.794). São números oficiais da Secretaria de Segurança Pública, que, desde janeiro, subdividiu as ocorrências. Março, mais recente mês da análise, registrou o maior número de estupros desde agosto de 2013. Foram 978 ataques (sendo 640 de vulneráveis) ou 31 por dia.

(Folha de S.Paulo, 16/05/2017 – Acesse o site de origem)

O número de estupros no Estado vinha caindo desde agosto de 2013, quando foram registradas 1.016 ocorrências.

A SSP afirma que os números de estupros de vulnerável começaram a ser divulgados no site da secretaria com o objetivo de “ajudar as políticas de prevenção contra esse tipo de crime.” “Todos os policiais civis de São Paulo passam por aulas específicas na Academia de Polícia, como atendimento público e direitos humanos, para prestar o melhor atendimento às vítimas”, afirmou em nota.

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Camisinha descartada no chão
Camisinha descartada no chão

O estupro de vulnerável é tipificado no artigo 217-A da lei 12.015/09 –”ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”. O crime também se configura quando praticado contra “alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. A pena é de 10 a 20 anos de reclusão. Se resultar em morte, de 12 a 30 anos.

Antes da lei, só havia os delitos de estupro e os de atentado violento ao pudor. Para esses casos, havia a chamada “presunção de violência” –ou seja, mesmo se não houvesse violência, presumia-se a existência em função da idade ou condição física ou mental da vítima. A “presunção” alimentava interpretações, como a vítima, apesar da idade, ser namorada do agressor ou prostituir-se.

Em recurso especial respondido em 25 de junho de 2016, o ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Sebastião Reis analisou a lei com base em um caso envolvendo uma criança de 12 anos de idade.

O cerne da controvérsia cinge-se a saber se a conduta do recorrido –que praticou conjunção carnal com menor que contava com 12 anos de idade– inclui-se ao tipo previsto no art. 217-A do Código Penal, denominado estupro de vulnerável, mesmo diante de eventual consentimento e experiência sexual da vítima. Para a configuração do delito de estupro de vulnerável, são irrelevantes a experiência sexual ou o consentimento da vítima menor de 14 anos.”

POBREZA

Na capital paulista, os dados do mês de março coletados pela Secretaria de Segurança Pública indicam bairros com menor de Índice de Desenvolvimento Humano com mais registros. Quanto mais próximo o IDH de 1, melhor a qualidade de vida (Moema, considerado com o padrão mais alto, tem 0,961). Os dados, de 2016, são um cálculo que compila dados como riqueza, alfabetização, educação, expectativa de vida e natalidade, entre outros fatores.

O Capão Redondo, na zona sul, lidera, com 19 boletins de ocorrência indicando estupro de vulnerável –o bairro é o 17º com pior IDH, entre 96 distritos, com índice de 0,782. A delegacia de Jardim dos Imbuias, também na região sul, registrou 16 casos. O Grajaú, onde a delegacia está localizada, é o sétimo bairro com o pior IDH (0,754). Entre os dez com mais casos de violência sexual contra vulneráveis, apenas Jaçanã e Vila Amália (ambos na zona norte) não estão na lista dos 20 com os índices mais baixos.

O registro de mais casos nesses bairros, no entanto, não necessariamente indica que a condição social interfira. “As mães tinham medo de denunciar, mas foram estimuladas por campanhas nas escolas e nos centros de convivência nas camadas com menor potencial econômico. A necessidade aflorou, porque não havia essa capacidade de enfrentar a denúncia”, diz a coordenadora do CNRVV (Centro de Referência à Vítima de Violência) do Instituto Sedes, Dalka Chaves de Almeida Ferrari. “Havia a ilusão de que a Justiça jamais chegaria até eles [os abusadores].”

Diego Padgurschi /Folhapress
Casal diante de cartazes contra violência sexual em tapume no Masp
Casal diante de cartazes contra violência sexual em tapume no Masp

“São regiões onde há mais notificações porque as pessoas são expostas ao crime e notificam mais que nas outras áreas”, afirma a promotora Valéria Scarance, do Ministério Público do Estado de São Paulo. “É possível que a pedofilia ocasional ocorra com mais frequência em outras regiões, mas o abuso é mais discreto e às escondidas. Há uma subnotificação nelas. A transgeracionalidade [quando o abuso é cometido por gerações da mesma família] é a moeda do silêncio nas classes alta e média.”

De acordo com os números da Secretaria de Segurança Pública, apenas 10 das 92 delegacias não registraram abuso de vulnerável neste ano. Somente dois deles, Campo Grande e Campo Belo (zona sul), estão na lista dos 20 bairros com maior IDH da cidade.

Bairros considerados nobres da capital paulista lideraram as estatísticas de estupro, desconsiderados os casos de abuso de vulnerável, nos primeiros três meses do ano. A Consolação (centro) teve nove registros; Pinheiros (zona oeste sete. Essa estatística comprova que os mais ricos não estão imunes aos abusos.

EM CASA

De acordo com Dalka, a faixa preferida do autor de estupro contra vulnerável é dos 7 aos 14 anos. Existe um pico também de bebês até quatro anos, mas não tão alto.

Scarance lembra o exemplo de um dos casos que cuidou no MP-SP: uma mulher que havia sido molestada pelo pai e, quando teve uma filha e era obrigada a frequentar festas de família, não deixava que a criança se aproximasse do avô molestador. “Essa queixa, no entanto, nunca foi apresentada.”

Para a promotora, não há uma causa para o abuso, mas “muitas causas”. “Não há explicação, nem mesmo a de que a pessoas foi abusada na infância”, diz. Ela cita exemplos: há a violência ocasional, de um homem com desejo sexual que escolhe o que está mais próximo para o crime; a de vingança, em que o abusador se vinga da mãe com a filha; e o pedófilo, que tem atração específica por crianças.

Leandro Machado/Folhapress
Estudantes da USP protestam contra formatura de aluno acusado de estupro de universitárias
Estudantes da USP protestam contra formatura de aluno acusado de estupro de universitárias

Em 2016, a promotora fez um levantamento dos boletins de ocorrência que chegaram até o MP com casos de estupro de vulnerável. Em regra, afirma, o abusador mora com a vítima, é o pai ou o padrasto. O índice mundial, afirma Dalka, do CNRVV, aponta um percentual de 70% a 80% de violência praticada por esse grau de parentesco. É baixo o índice de penetração: o percentual de ato consumado é de 10% para os casos de crianças até 14 anos e de 15% entre adolescentes abusadas. O ato libidinoso, por si só, já é configurado como estupro.

“É muito importante, portanto, não se convencionar a classificar o estupro ao laudo de conjunção carnal, porque normalmente não são deixados vestígios. É um erro pensar que estupro de vulnerável é o mesmo de adultos”, afirma Scarance.

Segundo a promotora, muitas vezes a própria vítima se retrata por não conseguir suportar o peso de um processo contra um ente. “Quase sempre o laudo de corpo de delito vem negativo, porque não há conjunção carnal. E muitas famílias colocam isso como uma absolvição [do abusador]. Há uma dificuldade de pessoas próximas de acreditar que aquele crime aconteceu. Em regra, duvidam porque acham que aquele homem tem um comportamento normal. E, quando o laudo vem negativo, mesmo que a criança nunca tenha falado de penetração, passam a duvidar dela.”

A retratação da vítima com o abusador, diz, passa a ser tão comum que chegou a ser catalogada como a “Síndrome da Adaptação da Criança Vítima de Abuso Sexual”, descrita pelo psiquiatra francês Martine Lamour no artigo “Os Abusos Sexuais em Crianças Pequenas: Sedução, Culpa, Segredo”, publicado em 1997 no Brasil. No texto, ele conclui que “vasta pesquisa nos Estados Unidos mostrou que os fatos negados, após uma primeira confissão, eram na na maioria fatos reais” e que essas crianças eram duplamente vítimas: “dos abusos sexuais e da incredulidade dos adultos”.

Para Dalka, há uma mudança evidente, com mais mães denunciando e orientando as crianças para que se defendam. “Muitas já não aceitam coisas de estranhos, não se deixam seduzir. Antes, não havia a capacidade de enfrentar a denúncia A partir do ano que vem, os abusos não passam mais para a Vara da Família; eles vão direto para a Vara Criminal.” Não resolve totalmente, diz, mas a percepção de impunidade tende a ser menor.

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