Em ao menos 90% dos casos, abuso foi cometido pelo atual companheiro
(R7, 04/12/2017 – acesse no site de origem)
Paula Silva* registrou dois boletins de ocorrência na zona norte de São Paulo em maio deste ano contra o marido. A diferença entre eles foi de apenas um dia. No primeiro, ela disse que o homem com quem era casada havia 17 anos, mas que há dois não convivia mais, tentou estuprá-la. Depois do primeiro registro, ela voltou para casa. Um dia depois, Paula voltou a registrar um boletim de ocorrência. Desta vez, o abuso tinha sido consumado.
Levantamento feito pelo R7 mostra que 37% dos estupros registrados em 2017 em que havia parentesco entre agressor e vítima foram cometidos pelo marido ou ex-marido da vítima. Amostragem feita pela reportagem em delegacias da cidade mostra que em ao menos 90% dos casos o abuso foi cometido pelo atual companheiro e 10% por um ex.
A base para os números desta reportagem foram os registros de 478 casos de abuso sexual em que a polícia identificou, no momento do registro, a relação entre a vítima e o suspeito do crime (veja todos os dados abaixo).
De acordo com levantamento feito pelo R7 com base em dados da SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública) do Estado de São Paulo que foram solicitados via Lei de Acesso à Informação, foram registados 7.173 casos de estupro de janeiro a agosto de 2017. Dos 539 boletins de ocorrência em que o parentesco entre a vítima e o agressor foi identificado, 37% delas eram ou foram casadas com o estuprador.
Dificuldade em identificar
Segundo a professora de serviço social da PUC (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Graziela Pavez, normalmente a mulher casada tem dificuldade de identificar uma violência sexual dentro do casamento por conta de uma cultura preestabelecida de que o sexo é uma obrigação no casamento.
“Mas isso é uma imposição. Se ela fala não, e esse ‘não’ é ultrapassado, é uma situação de violência. Principalmente se [o sexo] for imposto à força. Independentemente de ser marido ou não, se for uma relação, tem que ter participação de ambas as partes, sem que uma delas seja obrigada a ceder. Se ela se sentiu abusada, é claro que isso vai ser uma violência”, afirma.
A promotora do MP-SP (Ministério Público do Estado de São Paulo) e integrante do Gevid (Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica) Fabiana Dal’Mas Rocha Paes acredita que a sociedade espera que o homem tenha um poder exacerbado e que a mulher seja subalterna. Isso, segundo ela, é a origem da violência de gênero. “O ato sexual deve ser consentido”, diz.
“O que acontece é que muitas vezes as vítimas de estupro não se percebem como tal. A vítima não se percebe como vítima. É importante falar que as relações devem ser harmoniosas e ter o consentimento e o respeito”, afirma.
Para a mestre em psicologia e professora do Centro Universitário Campos de Andrade, do Paraná, Analu Ianik Costa, “a submissão ao marido leva a mulher a acreditar que é um dever dela satisfazer o marido independente da vontade dela”.
Um segundo desafio da mulher, depois de identificar o problema, seria encerrar a relação e denunciar o companheiro, dizem as especialistas. Pelo levantamento feito pelo R7, 64% dos abusos sexuais registrados neste ano aconteceram dentro de residências e 87% das vítimas foram mulheres. Em 6,4% dos casos, ao menos um suspeito foi preso em flagrante.
A promotora Fabiana lembra que o Código Penal pune casos de estupro dentro do casamento, mas que muitas vezes o que a vítima diz é desacreditado. “Precisamos prestigiar a palavra da vítima. Essa falta de respeito à palavra dela faz com que tenhamos a impunidade”, afirma.
De acordo com a professora Graziela, existem serviços municipais e estaduais que podem ajudar mulheres que sofreram abusos sexuais dentro do casamento “para que ela faça a identificação correta de quais as alternativas de enfrentamento ela deve seguir. Mesmo sentindo medo, ela tem que buscar ajuda”, afirma.
A professora Analu diz que é fundamental contar com uma rede de apoio de amigos e profissionais que possam ajudar a vítima a reconstruir sua vida. “Existem consequências como depressão, ansiedade e problemas de autoestima que são importantes de serem trabalhadas”, conclui.
Uma história de superação
Maria Aparecida da Silva Souto tem 50 anos é mulher negra e pedagoga. Ela viveu a realidade da violência doméstica durante quatro anos. E diz que quer contar sua história porque pode fazer a diferença. Quando ela tinha 17 anos, se casou com seu agressor. Segundo ela, no começo tudo “era lindo e maravilhoso”.
“Até que veio o primeiro grito, o primeiro empurrão, o primeiro tapa, a primeira queimada de cigarro e aí só foi piorando”, conta. Maria afirma que as agressões aconteciam das mais diversas formas: o ex-marido levava outras mulheres para casa, fazia com que ela comesse comida do chão e chegou a estupra-la.
A pedagoga conta que percebeu que o abuso tinha acontecido logo em seguida: “Eu não consenti. Eu não queria”. De acordo com Maria, ela só conseguiu começar a falar sobre esse assunto há três anos. Antes disso, era muito difícil para ela lidar com o julgamento das pessoas. “A culpa não é minha. Eu falo para as mulheres que encontro que elas não são inferiores. Não somos culpadas. Não somos culpadas”, diz.
Maria também era impedida de tomar anticoncepcional pelo ex-marido. Segundo ela, “se tomasse, era porque estava traindo”. Do casamento, vieram sete filhos. Apenas um sobreviveu aos ataques que a mãe sofria durante as gestações e foi desse filho que veio a coragem para sair da situação em que ela vivia.
“Um belo dia ele tacou meu filho na parede. Aí o negócio ficou feio. Eu só reagi quando foi pra cima do meu filho”, conta. Depois disso, veio a separação. De acordo com ela, esse foi um período “muito difícil”. Porém, depois que conseguiu sair da situação de violência em que vivia, ela casou de novo, fez faculdade, superou um câncer e hoje trabalha e ajuda outras mulheres.
Maria conta que a primeira vez que foi em uma delegacia, o policial perguntou para ela “o que ela tinha feito de errado” e se ela tinha um amante. “Eu poderia estar morta, eu poderia ser um número”, lamenta. “Apesar de terem tentado tirar minha dignidade, não conseguiram”, diz.
Quando e onde
Segundo levantamento feito pela reportagem do R7, 36% dos abusos registrados entre janeiro e agosto de 2017 aconteceram durante a noite. A segunda parte do dia em que mais acontecem estupros é à tarde, com 30% dos casos. Em seguida está a parte da manhã, com 18% dos casos. A madrugada teve 16%. Não foram considerados os boletins de ocorrência cujo horário era indeterminado.
Em todo o Estado, a grande São Paulo foi a região que mais registrou casos de abuso. A capital teve 1.525 casos, Guarulhos 204 e Campinas 178.
Na capital, o distrito policial que mais recebeu denúncias, 48 no total, foi o 47º DP (Capão Redondo). Do total de abusos, 84% foram na região periférica de São Paulo. A zona leste foi a região da cidade com maior número de ocorrências: 35%. Em seguida está a zona sul (30%) e norte (19%). Zona oeste e centro tiveram, cada uma, 8% dos registros.
* O nome da vítima foi preservado pela reportagem.
Giorgia Cavicchioli