(O Estado de S. Paulo, 03/03/2016) A cantora norte-americana Kesha voltou aos holofotes na última semana após perder a primeira audiência do processo que move contra seu produtor, Dr. Luke. Kesha está limitada pelo seu contrato a só lançar ou divulgar músicas pela gravadora de Luke, que a cantora alega ter abusado física e psicologicamente dela. Agora a artista batalha na justiça para poder quebrar o contrato com o produtor. Até lá, nada de Kesha no mundo da música.
Na audiência do dia 19 de fevereiro, a juíza responsável pelo caso disse não ver nenhum motivo para a quebra de vínculo entre as partes. Aparentemente, não querer trabalhar com seu abusador não é motivo suficiente. E agora Kesha corre o risco muito sério de afundar sua carreira já que, na prática, está impedida de trabalhar.
“Oras, mas como você tem tanta certeza que ela foi mesmo abusada? É só a palavra dela!”
Sim, é verdade, eu só tenho a palavra de Kesha e a consciência de que vivemos numa sociedade em que a mulher é culpada até que se prove o contrário. Dr.. Luke negou as acusações, mas, como já defendi diversas vezes neste espaço, eu prefiro sempre acreditar na palavra da vítima (e as estatísticas mostram que estou do lado certo em 98% das vezes). Já basta toda a sociedade dizendo o contrário.
É possível que Kesha esteja mentindo, ainda que eu não ache ser esse o caso. No entanto, ela é constantemente desacreditada e atacada, porque nossa sociedade misógina faz de tudo para constranger as vítimas de abuso que se levantam, ainda mais se o abusador em questão é alguém tão poderoso em uma indústria bilionária. Foi assim com as vítimas do comediante Bill Cosby, é assim com Kesha, pode ser assim em casos futuros.
O caso Kesha tem muitos aspectos interessantes, mas dois pontos merecem destaque: sua batalha mostra como a indústria do entretenimento é poderosa e complicada, além de expor que fama e dinheiro não protegem uma mulher contra a violência.
Após a decisão do dia 19/02, a campanha #FreeKesha teve muita repercussão nas redes sociais e vários artistas a apoiaram publicamente. Alguns, inclusive, já trabalharam com Dr. Luke, mas ninguém teve coragem de se indispor explicitamente contra o produtor, o que é até compreensível. O Buzzfeed contatou 20 celebridades que apoiaram Kesha ou que tinham vínculo com Luke e perguntou se voltariam a trabalhar com ele no futuro. Todos os artistas se negaram a responder a pergunta. A verdade é que Dr. Luke e a Sony, com quem ele tem contrato, são peças importantes de uma indústria gigantesca e existe um medo real das consequências futuras dessa declaração. Ou até de represálias, como a própria Kesha vem sofrendo. Pelo andar da carruagem, não parece que o produtor será punido por nada.
Também é impossível não falar sobre como o fato de uma mulher ser rica e famosa não a deixa imune ao abuso. O mundo da música também tem violência contra a mulher e, assim como em qualquer lugar, as vítimas sentem-se excluídas, sozinhas e são coagidas a não denunciar. O agravante é que, por não serem vistas como vulneráveis, muitas dessas mulheres não obtém justiça. No Brasil, tivemos o caso de Luana Piovani, que perdeu uma ação contra o ator Dado Dolabella exatamente por isso: não foi considerada vulnerável o suficiente para depender da justiça condenar seu agressor. Uma sentença sem base nenhuma, já que a violência contra a mulher não vê conta bancária e nem a lei Maria da Penha tem qualquer ressalva em relação a classe social..
As imagens de Kesha em sua audiência são de cortar o coração. A priori, uma mulher com fãs e sucessos no mundo todo não tem porque atrair essa atenção negativa a não ser que o que denuncia seja verdade. Falta empatia de nossa parte para entender as nuances do assédio sexual, da cultura do estupro e as dificuldades em denunciar o agressor. Infelizmente, são muitas as Keshas do mundo obrigadas a trabalhar e conviver com seu abusador, a custo de sua dignidade, respeito e sanidade. Tentar não duvidar de sua palavra é o mínimo que podemos fazer.
Libertem a Kesha.
Acesse o PDF: A falta de empatia com Kesha mostra que denunciar abuso não é fácil, por Nana Soares (O Estado de S. Paulo, 03/03/2016)