(Último Segundo, 24/04/2015) Rhobi Samwelly foi circuncidada aos 13 anos e luta contra a prática na Tanzânia; 15% das mulheres do país foram mutiladas
Quem vê o riso aberto de Rhobi Samwelly pela cidade de Musoma, Tanzânia, não imagina que seu dia a dia é ajudar vítimas de uma tradição tão polêmica que quase a matou na adolescência: a mutilação genital feminina, prática que consiste em cortar partes do clitóris e dos pequenos e grandes lábios da vagina, às vezes com o uso de facões e navalhas.
“As vítimas pedem nossa ajuda para que possamos protegê-las. É um desafio constante”, afirma Rhobi, uma das coordenadoras da Tanzania Development Trust (TDT), ONG que acolhe vítimas do procedimento.
Na Tanzânia, 15% das jovens de 15 a 49 anos são submetidas à mutilação, de acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância, o Unicef. O levantamento da instituição, divulgado em 2013, foi realizado em 29 países da África e do Oriente Médio, onde há maior concentração de casos. O órgão estima que cerca de outras 30 milhões de mulheres poderão ter a vagina mutilada nos próximos dez anos.
O procedimento teria função sanitária – a mulher se tornaria mais limpa após o ato – e também atenderia a questões culturais: o clitóris é visto por sociedades patriarcais como a falsa representação do pênis e, portanto, competiria com a virilidade masculina. Na maioria dos casos, a mutilação veta à mulher o direito ao prazer sexual.
Questão social
Nascida em uma vila da região de Mara, no norte do país, Rhobi precisou lidar com o assunto antes mesmo da própria mutilação. Aos 11 anos, quando uma de suas amigas morreu ao passar pelo procedimento, ela descobriu que, nesses casos, o corpo da vítima era jogado na mata para ser comido por animais selvagens, em vez de ser cremado. “Foi a primeira vez que pensei sobre o assunto. Fiquei em choque por dias”, lembra.
Quando chegou sua vez, aos 13 anos, a tanzaniana tentou relutar. Mas sua mãe foi incisiva: ou ela se submeteria à mutilação ou destruiria a família. Rhobi obedeceu, mas quase perdeu a vida após uma hemorragia muito forte. Depois de conseguir se recuperar, fez os pais prometerem que suas irmãs mais novas jamais passariam por aquilo. Alguns anos mais tarde, já casada e com uma filha, ela passou a se desentender com os sogros, que exigiam a mutilação genital da neta.
“Me disseram que, caso minha filha não fosse mutilada, meu marido não poderia se sentar com os anciãos da aldeia, o que representaria um grande peso social para todos nós”, lembra.
Foi pensando em uma solução para esse impasse que a tanzaniana procurou a ONG TDT e passou a fazer parte da instituição. Por causa de seu ativismo social, os anciões da aldeia a convidaram para um encontro a fim de explicar a ela porque o procedimento deveria ser realizado. Ela recusou o encontro e iniciou seu trabalho de conscientização no vilarejo. Demorou pouco tempo para que os líderes fossem convencidos por ela e banissem a prática naquela aldeia. O desafio dela é tentar fazer o mesmo em outras aldeias.
Atualmente, a Tanzânia tem um dos índices mais altos de mulheres que rejeitam a manutenção dessa cultura da África. De acordo com o Unicef, 92% das tanzanianas acreditam que a mutilação deveria acabar. O número só é menor que o de Benin e Gana, ambas com 93% de rejeições cada. Em contrapartida, Guiné tem o menor número de mulheres que apoiam o fim da mutilação genital: 19%. Mali, com 20%, Serra Leoa, 26%, Gâmbia, 28% e a Somália, 33%, completam a lista de países que preferem manter a tradição.
Cultura à prova
A origem da mutilação genital feminina é milenar, mas incerta. Segundo Olga Regina Zigelli Garcia, pesquisadora do Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), há estudiosos que apontam para a época da venda de escravas no mercado árabe – elas seriam circuncidadas antes do negócio. Outros falam da invasão do Vale do Nilo por tribos nômades que realizavam o procedimento e o espalharam pelo Egito e países vizinhos por difusão nos anos 3.100 a.C.
Para Claudio Bertolli Filho, professor de antropologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), como a mutilação genital feminina tem uma representatividade grande nas sociedades africanas, sua permanência deve ser discutida e, em muitos casos, respeitada.
“Essa é uma cultura que passa de geração para geração. Para nós, por exemplo, é normal a mulher implantar silicone em várias partes do corpo, fazer cirurgia de reconstituição de hímen para ficar virgem novamente, entre outros. Se a circuncisão não for total, não acho que deveria ser erradicada”, pondera.
Já a socióloga Olga considera a mutilação genital uma violação dos direitos humanos e herança das sociedades patriarcais e, por isso, não deve ser mantido apenas por seu “questionável valor cultural”.
“A prática, além de violar a dignidade humana, também viola os direitos da criança, já que meninas entre quatro e oito anos também são violadas. Não podemos legitimar crueldades e desigualdades com a desculpa da tradição”, afirma.
Pelo fim da circuncisão
O Unicef aponta que as consequências da mutilação genital vão muito além da dor e angústia: ela pode causar desde infertilidade, infecções urinárias e de bexiga até o aparecimento de cistos. Há também aumento do risco de problemas durante o parto, o que em casos extremos pode levar à perda do bebê.
“Nos casos mais extremos, a vagina se torna, basicamente, o orifício para urinar e menstruar. Durante a relação sexual, essa vítima sente bastante dor e, caso engravide, na hora do parto, tanto a mulher como o bebê correm sérios riscos de morte. Se ambos sobreviverem, é provável que a mulher sofra com o aparecimento de fístulas, infecções, entre outros”, afirma Théo Lermer, ginecologista, sexólogo e colaborador do ambulatório de sexualidade do Hospital das Clínicas.
Apesar dos índices expressivos, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), que atua em 22 países do continente, afirma que cerca de oito mil comunidades na África concordaram em abandonar a mutilação genital feminina. Um programa conjunto entre o Unicef e o UNFPA visa a acelerar o fim da prática em 15 países da África Ocidental, Oriental e do Norte.
“Acabar com a mutilação genital não é uma questão de simplesmente impor valores. O fim da prática é uma ação que inclui governos nacionais, líderes religiosos locais, os meios de comunicação e o mais importante, comunidades e famílias”, diz Melanie, assessora do Unicef.
Para combater a mutilação feminina na Tanzânia, a ONG em que Rhodi atua depende de doações e voluntários de várias partes do mundo. “Recebemos inclusive cerca de R$ 410 mil do Brasil. É por meio dessas ações que salvamos nossas meninas”, afirma Julian Marcus, presidente da Tanzânia Development Trust.
Sociedade tanzaniana
Embora seja um dos países mais pobres do mundo, com boa parte de sua população vivendo abaixo da linha de pobreza, a Tanzânia tem tido sucesso em atrair investimentos de várias partes do mundo. Ao contrário de outros países africanos, cuja riqueza potencial contrasta com a pobreza real, o país passou a investir em em autossuficiência por meio da criação de cooperativas agrícolas e nacionalização de fábricas, plantações, bancos e empresas privadas.
O turismo é uma importante fonte de receitas. Entre as atrações mais visitadas estão o Kilimanjaro, montanha mais alta da África, e parques nacionais ricos em vida selvagem, como o Serengeti. Um dos maiores problemas do país atualmente é a caça ilegal. Conservacionistas têm alertado que, por conta da exploração do marfim, os elefantes podem desaparecer até o final desta década.
Amanda Campos
Acesse no site de origem: Após convencer aldeia, vítima de mutilação genital pede fim da prática na África (Último Segundo, 24/04/2015)