(BBC Brasil, 14/04/2016) Na noite em que Jumai foi sequestrada na escola para meninas de Chibok, no Estado de Borno, na Nigéria, ela ligou para seu pai.
Ela estava na carroceria de uma camionete, lotada de colegas, enquanto homens armados tentavam levá-las. Seu pai, Daniel, disse a ela que saltasse do veículo – mas a ligação caiu.
Daniel saiu de casa para tentar captar algum sinal de telefone. Quando ligou de volta, um homem respondeu: “Pare de ligar, sua filha foi levada”.
O pai percebeu que o destino da filha estava “nas mãos de Deus”. Tentou ligar de novo no dia seguinte, mas a linha estava inativa.
Embora algumas famílias das garotas desaparecidas tenham autorizado o uso de nomes e fotos, a reportagem trocou os nomes de Jumai e do pai para preservar a identidade deles.
Até o sequestro das meninas, a área de Chibok era relativamente tranquila. O grupo radical islâmico Boko Haram havia atacado vilas ao norte e a leste, mas essa movimentada cidade-mercado havia escapado.
Daniel, que vive em Mbalala, cidade próxima, enviou sua filha à escola em 14 de abril de 2014 para o primeiro de seus exames finais.
Mas naquela noite, em um dos ataques mais organizados do grupo, o Boko Haram atacou o complexo escolar e sequestrou Jumai e 275 de suas colegas.
Sua filha nunca conseguiu saltar da camionete, como algumas meninas que fugiram. Mas Daniel não perdeu a esperança de reencontrá-la. Eles são muito próximos.
“Eu a entendo como ninguém”, diz o pai. “Ela trabalha mais duro do que qualquer um de seus três irmãos e dirige uma moto como um homem.”
Diálogo frio
Há alguns meses, Daniel decidiu tentar ligar para o número da filha mais uma vez. Uma voz de homem respondeu:
“Esse telefone é da minha mulher, o que você quer?”
“Quem é você?”, respondeu Daniel.
O homem disse: “Quem é você?” Daniel desligou.
Dias depois, o pai fez uma nova chamada. O homem respondeu novamente.
“Por que você está ligando para esse número?”, ele perguntou.
Daniel mentiu: “Estou ligando porque conheço você de Maiduguri” – a maior cidade no Estado de Borno.
“Se você me conhecesse não teria ligado para esse número”, respondeu o homem.
Ele disse ser Amir Abdullahi, e se apresentou como um líder militante. Daniel não ligou mais depois disso.
Jumai é natural de Mbalala, cidade a 11 km de Chibok e uma das mais afetadas pelos sequestros. Ao todo, 25 garotas da cidade estão desaparecidas.
Uma cidade movimentada de mercados no passado, onde comerciantes vinham de longe para comprar feijão e gado, hoje tem bancas vazias. As estruturas de madeira das bancas ainda ocupam a praça principal.
Hoje em dia o Exército restringe todas as atividades dos moradores – eles não podem comprar alimentos a granel nem gás de cozinha e geradores não podem funcionar à noite, então as pessoas vão para casa na escuridão.
Sem escolas e sem trabalho, jovens não ficam na cidade caso tenham oportunidade de sair. Meninos buscam trabalho em outros lugares, e meninas tentam se casar o mais cedo possível.
Tentando se virar com o que podem, mulheres vendem lanches caseiros na beira da estrada.
Quando não estava na escola, Maryam Abubaker costumava ajudar a mãe a vender esses lanches, bolos de feijão e macarrão. No dia em que Maryam foi sequestrada, ela tinha ajudado a mãe antes de ir à escola.
“Ela é uma boa mulher de negócios. É bem preguiçosa na roça, mas ótima com clientes”, disse a mãe.
Aquele seria o último momento recente de Binti com a filha.
A melhor amiga de Maryam é sua meia-irmã Hansatu. Elas faziam tudo juntas, tinham os mesmos amigos e até costuravam roupas para que pudessem combinar os trajes.
Hansatu adorava moda e queria ser uma designer. Logo antes de ser sequestrada, ela havia implorado à mãe por uma máquina de costura.
Depois de seu desaparecimento, seus irmãos e irmãs mais novos viam suas roupas e perguntavam quando ela iria voltar. A mãe acabou guardando as roupas para parar com os questionamentos.
Ela mostra a roupa que Hansatu usaria no casamento de uma amiga, que acabou não acontecendo.
“Vou guardar até elas voltarem”, diz a mãe.
Esses pertences são a única coisa que restou a esses pais. Desde que suas filhas foram levadas, eles não receberam informações do governo sobre o possível paradeiro das meninas.
O último presidente se negou a atender os pais, e a nova administração fez pouco para rastreá-las. A verdade é que ninguém tem ideia de onde elas possam estar.
Para a família de Grace Paul, tudo o que sobrou foi uma foto. Grace tem 19 anos hoje. É uma ótima cantora, segundo seu pai. Adora matemática e quer ser médica.
As meninas na escola de Chibok representavam os jovens mais ambiciosos da vila.
Em um país onde menos da metade dos jovens termina o ensino secundário, elas integram uma minoria que aposta na educação. E algumas tiveram que lutar por isso.
Aisha Greman tinha 17 anos quando foi sequestrada. O pai diz que ela se recusou a casar enquanto ainda estava na escola, embora tivesse recebido propostas.
Trabalhadora dedicada, ela quer cursar universidade para se tornar uma profissional de saúde.
Jinkai Yama é a mais velha entre quatro irmãs. Queria desesperadamente se alistar no Exército e integrava a brigada de cadetes mulheres.
Suas irmãs mais novas perguntam por ela todo o tempo. No mês passado, quando houve relatos sobre uma menina de Chibok encontrada viva em Camarões, estavam convencidas de que era ela. Mas a jovem era de Bama, uma cidade bem mais ao norte.
Quando chove e está escuro, o pai de Jinkai fecha os olhos e tenta imaginar onde a filha está. Como muitos dos pais na cidade, ele quase já perdeu as esperanças.
Ele e a mulher não acreditam que o governo irá fazer qualquer coisa para encontrar as meninas. Se fizer, diz a mãe de Jinkai, eles teriam enviado uma equipe a Camarões o quanto antes – o envio acabou levando três dias.
A falta de confiança é tão grande que abre margem para teorias da conspiração.
O pai de Jumai, Daniel, acredita que o número de telefone da filha seja chave para descobrir seu paradeiro, mas acha que o governo não pode oferecer nenhuma ajuda. Ele se recusa a passar o número ao governo.
Alerta de ataque
O Exército não costuma ir a Mbalala com frequência, mas todo domingo soldados passam para dispersar pequenos comerciantes do mercado. A região está em alerta após uma série de ataques suicidas. Qualquer ponto que possa servir de aglomeração é foco de tensão.
Quando a reportagem visitou o local, o Exército informou que qualquer um poderia ser um terrorista suicida. Ou seja, até meninas. Nos últimos dois anos, muitos dos terroristas suicidas usados pelo Boko Haram eram meninas.
Houve ataques a campos de refugiados e mercados por toda a região. Em fevereiro, o Boko Haram alvejou o mercado de Chibok, matando 13 pessoas.
Para os pais, a suspeita de que as filhas possam ser autoras de ataques não é algo simples de aceitar.
“Eu dei à luz essa menina”, disse a mãe de uma das meninas. “Mesmo se ela se aproximar de mim com uma arma na mão, deixarei que me mate, mas ainda assim irei dar boas vindas a ela.”
Sinal de vida
Nesta semana, um vídeo divulgado pelo Boko Haram mostra o que parece ser algumas das meninas sequestradas em Chibok.
O vídeo, que teria sido gravado em dezembro do ano passado, foi enviado ao governo da Nigéria e mostra 15 garotas em trajes negros, que se identificam como estudantes levadas da escola.
Algumas das jovens foram reconhecidas pelos pais. Caso tenha a autenticidade confirmada, será o primeiro registro das meninas desde maio de 2014.
O sequestro coletivo motivou uma campanha mundial nas redes sociais, com a hashtag #BringBackOurGirls (traga nossas meninas de volta, em tradução livre) e que envolveu personalidades como a primeira-dama dos EUA, Michelle Obama.
Stephanie Hegarty
Acesse no site de origem: As meninas de Chibok: a cidade nigeriana que perdeu suas garotas (BBC Brasil, 14/04/2016)