Até que a morte nos separe, por Carla Rocha

02 de maio, 2015

(O Globo, 02/05/2015) “As mulheres que têm sucesso com os homens são aquelas que mantêm uma certa qualidade maternal e entendem as fraquezas dos homens. E têm pena deles por isso’’. Da feminista Camile Paglia em recente entrevista à “Folha”. Li a frase em profundo silêncio interior. Primeiro, achei que tinha entendido, apesar daquele incômodo de digestão malfeita, as críticas de Paglia ao feminismo contemporâneo. Poucos dias depois, tive certeza de que não só não havia entendido nada, como também que aquilo não fazia o menor sentido. E bastaram mais algumas ocorrências policiais e a divulgação de uma nova pesquisa sobre violência para ficar perplexa com o tamanho da ignorância acerca de tudo que diz respeito aos direitos e à vida que as mulheres levam, em pleno século XXI, no Rio ou na conservadora Carolina do Sul, nos EUA.

Os números estão aí. Não cabe apelação, seja de feministas, de machistas ou da feminista mais antifeminista da história. O Estado do Rio, segundo um dossiê do Instituto de Segurança Pública, teve 420 assassinatos de mulheres em 2014, mais 18% que no ano anterior. Dá mais de uma mulher morta por dia. As investigações não são lá essas coisas por aqui, mas como não há inocentes abaixo da Linha do Equador, sabemos que a maioria foi morta por homens e, quase seguramente, alguns deles eram inimigos íntimos, com quem as vítimas dormiam ou já tinham dividido a cama. Na Carolina do Sul, 300 foram mortas por seus digníssimos em uma década, eu disse uma DÉCADA.

Nós morremos mais, muito mais por estas bandas. E os inquéritos nem sempre chegam à autoria. Na Carolina do Sul, tal mortalidade — o estado está no topo da violência doméstica americana mesmo com números acanhados diante da nossa realidade — mereceu o olhar apurado de uma equipe de repórteres do pequeno jornal “The Post and Courier’’, de Charleston, que traçou o perfil das vítimas e das circunstâncias sociais e culturais por trás da triste e vergonhosa estatística. A série “Till death do us part” (Até que a morte nos separe) venceu o Pulitzer deste ano na categoria serviço público. Aqui, um levantamento desse tipo também é possível, embora seja um pouco mais complexo dada a dificuldade por conta da precariedade dos inquéritos e de acesso às informações públicas. Dos casos compilados pelo ISP, mais de 62% tinham pouco a dizer sobre os criminosos, se eram próximos ou não das vítimas, se as conheciam ou não. Dos crimes dos quais se tinha mais informações, quase 10% dos autores eram companheiros ou ex-companheiros das vítimas. Claro que esse total é muito maior.

Outros dados do Dossiê da Mulher dão pistas sobre o que deve ser o verdadeiro universo de vítimas mortas por seus homens ou ex. Sabe-se mais a partir das tentativas de homicídios pelo motivo óbvio de haver sobreviventes. Das 781 mulheres atacadas no ano passado, 33,8% tiveram como prováveis algozes companheiros ou ex-companheiros. São personagens de histórias terríveis que lembram castigos medievais. Dias atrás, em Caxias, um marido jogou álcool e provocou queimaduras gravíssimas na mulher, mãe de seus dois filhos e com quem vivia há 12 anos. Por mês, cerca de 22 mulheres sofrem agressões em que há clara intenção de matar. A violência sexual é uma epidemia. No Rio, há em média 12 estupros por dia. Foram 4.725 em 2014, apesar de uma queda de 3%. O contato com os brutos começa muito cedo. Mais de 60% das vítimas tinham menos de 17 anos — mas mulheres de 50, 60 e 70 também estão lá nas estatísticas. Em 42% das ocorrências, as mulheres tinham relações próximas com seus estupradores: ao lado de maridos selvagens, há pais, padrastos, vizinhos.

Tudo muito desolador mesmo com Lei Maria da Penha e a mais recente do Feminicídio. Passados anos de revolução feminista, a vida da mulher ainda é hostil. Enquanto a intelectualidade se questiona, Camile Paglia ataca excessos e omissões, e suas opositoras — e até seguidoras — se escandalizam, as questões ainda são muito rasteiras, pelo menos aqui em Terra Brasilis. Não que eu queira nivelar por baixo, mas acho que Paglia, com todo respeito que merece, teria que espremer teorias, transmutá-las e revirá-las do avesso para me convencer de que o resgate de uma perdida vocação maternal poderia melhorar a relação entre homens e mulheres, fosse numa mesa de bar ou num casamento, onde todo um círculo de violência começa. A reflexão é fundamental, mas ela não pode perder seu sentido prático. Na Baixada, a mulher, em especial a pobre e negra, sofre, apanha e morre só por ser mulher. Em vez de um minuto de silêncio, proponho muito barulho contra um genocídio de gênero.

 Acesse no site de origem: Até que a morte nos separe, por Carla Rocha (O Globo, 02/05/2015)

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