(Géssica Brandino/Agência Patrícia Galvão, 28/06/2016) Amanhã (29), a Comissão de Constituição e Justiça do Senado irá votar o Projeto de Lei da Câmara 07/2016, que introduz alterações na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). Após a audiência pública realizada na última terça-feira (21), que contou com a participação de representantes dos movimentos de mulheres, do Judiciário e das delegacias de polícia, ficou evidente que o ponto mais polêmico do projeto é o artigo 12-B, que confere à autoridade policial o poder jurisdicional de deferir ou negar medidas protetivas de urgência às mulheres em situação de violência, hoje competência exclusiva do Judiciário.
Durante a audiência pública, representantes de redes e articulações feministas também criticaram a ausência de diálogo com os movimentos de mulheres sobre as alterações propostas, que visam mudar aspectos importantes de uma Lei que foi construída a partir das reflexões e discussões de organizações feministas que integraram o consórcio que elaborou a primeira versão do projeto que deu origem à Lei n 11.304. Integrantes do Judiciário também apontaram a falta de efetividade e a inconstitucionalidade do artigo, que já havia sido alvo de notas técnicas de associações do sistema de justiça. Apenas entidades ligadas à categoria policial defenderam a proposta.
Na semana passada, a Agência Patrícia Galvão ouviu posicionamentos dos movimentos de mulheres em relação ao projeto.
Leia mais:
Apelo à prudência marca debate sobre mudanças na Lei Maria da Penha (Agência Senado, 21/06/2016)
Debatedores divergem sobre aplicação de medidas protetivas da Lei Maria da Penha (TV Senado, 22/06/2016)
O Projeto de Lei tramitou originalmente na Câmara dos Deputados (PL 36/2015) com a proposta inicial de aprimorar o atendimento policial às mulheres em situação de violência, estabelecendo, por exemplo, que os serviços funcionem 24h, que o atendimento seja feito preferencialmente por profissionais do sexo feminino e que a mulher não seja revitimizada no atendimento. Entretanto, na fase final de tramitação na Casa, o PL foi alterado pela Comissão de Constituição e Justiça, que acrescentou ao texto o artigo 12-B.
Na audiência, a representante da União Brasileira de Mulheres (UBM), Neuza Castanha, manifestou-se contra a mudança em discussão, que a seu ver “viola direitos e fere o paradigma do Estado democrático”. Por sua vez, o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), João Ricardo Costa, apontou a “inconstitucionalidade evidente” do PLC 7/2016, ao trocar uma garantia jurisdicional por uma medida administrativa precária. O mesmo argumento também foi destacado pela advogada Carmen Hein de Campos, do consórcio de ONGs que elaborou a proposta do projeto da Lei Maria da Penha. O consórcio também emitiu nota pública manifestando-se contrário ao artigo 12-B do PLC 07/2016.
Diante da divergência em relação ao artigo, após a audiência pública, a votação do PLC 07/2016 foi adiada a partir do pedido do senador Randolfe Rodrigues. A secretária especial de Políticas para as Mulheres, Fátima Pelaes, que participou da audiência, também defendeu o adiamento da votação para aprofundamento dos debates. As senadoras Vanessa Grazziotin e Fátima Bezerra também se manifestaram sobre o projeto.
Confira abaixo o posicionamento das representantes de redes e articulações feministas ouvidas pela Agência Patrícia Galvão:
Ausência de debate é fortemente criticada
Construída a partir de amplo diálogo entre o movimento de mulheres, feministas, juristas e defensores dos direitos humanos, a Lei nº 11.340 de 7 de agosto 2006 é uma das legislações mais conhecidas no Brasil e é reconhecida internacionalmente como uma das mais completas no enfrentamento à violência contra as mulheres.
“A Lei Maria da Penha tirou a violência contra a mulher de um colo pouco receptivo, que eram as delegacias em geral e as delegacias das mulheres, e colocou no do Judiciário, que passou a se debruçar sobre essa temática.” Leila Linhares (Cepia-RJ)
“Essa Lei encontrou uma receptividade muito grande na sociedade. Claro que não é a lei que vai acabar com a criminalidade, mas ela forçou o Estado a olhar para essa violência e criar os juizados especializados”, afirma a advogada Leila Linhares, que atuou no consórcio de ONGs que elaborou o pré-projeto da Lei Maria da Penha, trabalhando na construção da proposta com outras ONGs, desde 2002, até a aprovação do texto, em 2006. O consórcio também emitiu nota pública manifestando-se contrário ao artigo 12-B do PLC 07/2016.
A especialista vê com preocupação a rápida tramitação do Projeto de Lei de nº 7. “Esse projeto tramitou por um lobby dos delegados de polícia, apoiado por aquela que chamamos de ‘bancada da bala’, de forma silenciosa, em meio às confusões pelas quais que o Brasil passa, sem nenhuma discussão com o movimento de mulheres, em uma posição corporativista.”
“É preocupante que o PLC 07/2016, uma proposta corporativa, tenha encaminhamento tão rápido no Congresso Nacional. Por que outras modificações da Lei Maria da Penha, consensuadas a partir do relatório da CPMI de 2013, seguem aguardando?” Carla Batista (Cladem/Brasil)
Para Carla Gisele Batista, integrante do Cladem/Brasil (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher), organização que também integrou o consórcio, estamos assistindo hoje ao desmonte de todo o processo de diálogo que culminou na Lei Maria da Penha. “Qualquer modificação da Lei não deveria ser feita sem um amplo debate envolvendo os diversos setores que lutaram para que a Lei Maria da Penha existisse. Parece que o PL faz parte de um propósito de tratar todos os problemas sociais como questão de polícia”, afirma a representante do Cladem.
“Não se pode admitir a aprovação de um PL sem que se passe por uma discussão mais ampla, que envolva o movimento de mulheres como um todo. A Lei Maria da Penha é uma conquista social e política.” Sônia Coelho (Marcha Mundial de Mulheres)
Sônia Coelho destaca que o movimento é contra qualquer posicionamento que venha a prejudicar a implementação da lei de violência doméstica. “Somos contrárias a qualquer alteração na Lei Maria da Penha ou em qualquer política para as mulheres que não tenha a participação popular e do movimento de mulheres. Essa é uma das leis oriundas do processo de discussão com o movimento feminista, elaborada por ele e acatada pelo governo, a partir de toda uma discussão com o movimento de mulheres. Com isso, a Lei Maria da Penha ganhou uma legitimidade muito grande, não só junto à população, mas também à Justiça. É uma das leis mais conhecidas pela população.”
A representante da Marcha Mundial de Mulheres também critica a tentativa de concentrar na segurança pública a decisão de deferir ou negar as medidas protetivas de urgência. Para Sônia, não há sentido em dar mais uma responsabilidade para a autoridade policial. “Não concordamos que as coisas estejam cada vez mais concentradas nas mãos da polícia. Precisamos pensar na proteção e no apoio por outros setores da sociedade, porque, afinal de contas, a polícia é quem menos tem protegido a população e as mulheres na nossa sociedade. É algo que não tem o menor sentido na realidade que vivemos hoje. Isso não contribuiria com a Lei Maria da Penha. Pelo contrário, seria um prejuízo muito grande.”
“Uma norma que dá poder jurisdicional ao delegado de polícia sem nenhum mecanismo de controle e limitação temporal é uma norma inconstitucional, porque só quem pode fazer a restrição de direitos fundamentais sensíveis é o juiz.” Thiago Pierobom (promotor de justiça do Ministério Público do Distrito Federal)
Pierobom, que é secretário da Copevid (Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais), avalia que é importante para a legitimidade da Lei Maria da Penha que o poder de expedir as medidas protetivas fique com o Judiciário. “O nosso grande receio é que, como o artigo proposto pelo Projeto de Lei é inconstitucional, pois viola o direito de jurisdição, há um seríssimo risco que, caso aprovado, o Supremo Tribunal Federal venha futuramente a declarar a inconstitucionalidade, o que enfraqueceria a Lei Maria da Penha.”
“Temos que refletir sobre qual é o nível de compreensão da violência de gênero por parte de delegados e delegadas, em um país em que a maioria das delegadas de DEAMs sequer recebeu as capacitações necessárias sobre violência de gênero.” Conceição Amorim (AMB)
Avaliando a situação das delegacias como órgãos desestruturados que enfrentam dificuldades para cumprir o papel de investigar e que não conseguem concluir os inquéritos de violência contra as mulheres, Conceição Amorim, da AMB (Articulação de Mulheres Brasileiras), pergunta: “Diante da sobrecarga, qual é o interesse efetivo de os delegados deferirem ou não as medidas protetivas?”. Conceição destaca ainda com preocupação o despreparo dos profissionais que atuam nas delegacias.
“Fazer a medida protetiva na delegacia não vai resolver o problema da demora. As mulheres precisam é que o Judiciário funcione corretamente. Precisamos que as Delegacias da Mulher se unam ao movimento de mulheres para pressionar pela agilidade da Justiça.” Ana Carolina Barbosa (UBM)
Conceição Amorim também destaca que a “polícia age muitas vezes como violadora dos direitos humanos no país inteiro. Sabemos que ainda há muito machismo e muitas violações nas delegacias, a exemplo do delegado no caso do Rio de Janeiro, que revitimizou uma vítima de estupro e que não é uma exceção – infelizmente sabemos que muitas vezes os delegados pensam que a mulher é culpada pela violência que sofreu”.
“Na Bahia há 417 municípios e apenas 15 DEAMs e isso significa que as mulheres vão continuar morrendo, pois, se não há estrutura nem para investigar e nem competência técnica para prender os criminosos, imagine atribuir à delegacia mais uma responsabilidade. Aquilo que a DEAM tem que fazer, que é registrar queixa e prender os criminosos, ela faz mal e porcamente.” Valdecir Nascimento (AMNB)
Valdecir Nascimento, da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), afirma que o fato de o presidente interino Temer, diante do caso de estupro no Rio de Janeiro, anunciar a criação de um núcleo de violência contra a mulher significa “negar quase 15 anos de construção de estratégias em relação às políticas de enfrentamento à violência contra a mulher. Para a AMNB, é preciso denunciar o esvaziamento de recursos e avançar para que novas estratégias de enfrentamento à violência possam surgir. Temos que investir na consolidação do Pacto de Enfrentamento à Violência contra a Mulher e deixar cada um com suas atribuições.”