Técnico de laboratório invadiu festa de Réveillon e matou 12 pessoas, entre elas sua ex-esposa e seu filho de 8 anos. Ex-ministra e diretora de ONG debatem o caso e as questões de gênero que ele envolve
(Nexo, 02/01/2017 – acesse no site de origem)
O técnico de laboratório Sidnei Ramis de Araújo, de 46 anos, invadiu a festa de Réveillon onde estavam reunidos familiares da ex-esposa, em um bairro de classe média de Campinas, assassinou 12 pessoas, deixou outras três feridas e, em seguida, se matou. Entre as vítimas estavam sua ex-companheira e seu filho de 8 anos.
Ao todo, nove mulheres foram mortas na noite de 31 de dezembro de 2016. Pelas evidências colhidas até agora, o caso tem as características de um feminicídio: o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher, com motivações ligadas ao ódio, desprezo ou o sentimento de perda do controle e da “propriedade” sobre o sexo feminino, comum em sociedades marcadas pela desigualdade de gênero. Em 2015, o feminicídio passou a ser caracterizado como um tipo específico de crime, punido com agravantes.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, o Brasil é o quinto país em número de homicídios de mulheres, em um ranking de 83 países. Dados do Mapa da Violência concluído em 2015 mostram que, somente no ano de 2013, houve 13 feminicídios por dia no país. Mais da metade deles foi cometida por familiares da vítima.
Por que não se trata ‘só’ de um ‘crime bárbaro’
Desde 2013, Araújo e a ex-esposa, Isamara Filier, disputavam a guarda do filho na Justiça, que decidiu restringir o convívio entre pai com o garoto devido a uma denúncia de abuso sexual feita pela mãe em 2012.
Segundo a ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres Nilcea Freire, a inconformidade com o fim do casamento e com a restrição imposta ao contato com o filho caracteriza o caso de Campinas como um crime de vingança. Os alvos predominantemente femininos, por sua vez, são um sinal de “ódio às mulheres”.
Ataques por vingança e misoginia tendem a ser cometidos quando um relacionamento já se rompeu e o agressor “não suporta ter perdido o poder”, disse Freire em entrevista ao Nexo.
“A violência contra a mulher foi por tanto tempo autorizada socialmente porque ela representa, na leitura do machismo, o castigo. Representa, para o conjunto da sociedade, a exposição desse poder [masculino] que em algum momento foi transgredido. Se você olhar no histórico de assassinatos de mulheres no Brasil e em outros países, você vai ver que muitas vezes o assassino escolhe um local público. Ele não busca se esconder.”
Nilcea Freire, ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, em entrevista ao Nexo
A resposta por meio da violência a sentimentos de frustração e injustiça é ensinada desde cedo aos meninos, segundo Marisa Sanematsu, diretora de conteúdo da Agência Patricia Galvão, parte do instituto de mesmo nome focado na defesa dos direitos das mulheres.
Para ela, um “não” de uma mulher pode despertar, em alguns casos, essa violência. Se sentir desafiado “na sua posição de poder, de marido e de pai”, disse Sanematsu em entrevista ao Nexo, “é o que antecede qualquer crime de violência contra a mulher”.
A diretora da agência acredita que a palavra “feminicídio” precisa ser mais usada. Segundo a ex-ministra de Políticas para as Mulheres, isso não costuma acontecer porque incomoda a sociedade, principalmente alguns homens.
“De uma maneira geral, para a sociedade, que é patriarcal, é mais confortável olhar para o crime como apenas mais um crime hediondo, horroroso, ter repulsa”, disse Freire. No entanto, para ela, esse olhar não aprofunda quais são “os determinantes nem sempre visíveis para o senso comum, como o machismo”.
Há ainda, segundo Freire, o fato de que a violência de gênero é em grande parte tratada com normalidade. “Milhares de mulheres são agredidas e mortas, é como se isso fizesse parte do panorama social. A violência contra a mulher é parte da paisagem social. Já avançamos muito, mas só quando acontece um crime bárbaro como esse é que isso ganha notoriedade. As centenas de mulheres assassinadas todos os dias não viram notícia”, afirmou a ex-ministra.
O discurso do agressor
No dia 1º de janeiro de 2017, dia seguinte à chacina, “O Estado de S. Paulo” revelou o conteúdo de duas cartas atribuídas a Araújo. Também foram encontrados áudios em que o atirador mostra sua intenção de realizar a matança.
Nas mensagens, Araújo se refere à ex-esposa como “vadia”. Segundo o jornal, em uma das cartas, ele diz querer atingir “o máximo de vadias da família”. Também afirma se sentir injustiçado frente ao sistema penal e pela separação do filho, pela qual culpa a ex-companheira. Cita ainda acontecimentos da política nacional e diz ter sido falsamente acusado de fazer mal ao garoto.
A publicação do conteúdo das cartas sofreu críticas. A ex-ministra de Política para as Mulheres disse que, sem contexto, ela pode ter impacto negativo. “É preciso pensar no quanto esse tipo de declaração [presente na carta], de divulgação, acaba por estimular atitudes, ao contrário do que se quer, que é prevenir. É preciso ser muito cuidadoso sobretudo com essa questão da espetacularização do fato”, afirmou Freire.
O risco, segundo Sanematsu, é que um setor da população tende a acolher o discurso de ódio disseminado no crime. “Uma divulgação que foque nas mensagens de ódio acaba tendo muito mais repercussão do que um debate sobre essa desigualdade nas relações”, disse.
“A gente sabe que todo agressor de mulher é uma pessoa comum, não é um psicopata. Existem exceções, os psicopatas e serial killers, mas a maioria dos casos de violência doméstica são cometidos por pessoas comuns. Os promotores que atuam no tribunal do júri em casos como esse contam que ele costuma ter o perfil do homem bom, trabalhador.”
Marisa Sanematsu, diretora de conteúdo da Agência Patricia Galvão, em entrevista ao Nexo
Como mudar o cenário
INTERROMPER O CICLO DE VIOLÊNCIA
É comum que feminicídios sejam antecipados de múltiplas ameaças e outros tipos de abuso. Segundo Sanematsu, devido a essa escalada, crimes como esse podem ser evitados: a chave é que uma intervenção ocorra antes que as ameaças de morte comecem.
“A ameaça já é uma situação de risco e é muito difícil avaliar a probabilidade de que ela se concretize”, disse. Por isso, deve haver “tolerância zero à violência contra a mulher, inclusive psicológica – como agressões verbais, xingamentos, violências morais que a mulher sofre. antes de chegar na física”.
Essa responsabilidade não é só da polícia ou da vítima, já que nem sempre a mulher recebe o suporte necessário para denunciar e permanecer segura. Segundo Sanematsu, pessoas próximas também devem ter essa política e denunciar.
Segundo o “G1”, a ex-esposa de Araújo já havia feito boletins de ocorrência contra ele por perseguição.
EDUCAR
Para Sanematsu, há um longo trabalho educacional a ser feito para evitar crimes como a chacina de Campinas. “A gente tem que ter um trabalho de educação, para que os meninos tenham a possibilidade, desde pequenos, de demonstrar suas emoções não só pela violência” para que, ao se tornarem homens adultos, saibam dialogar e encontrar outros canais para extravazar uma sensação de injustiça, descontentamento ou contrariedade.
“Não é apenas um ato tresloucado de um homem com orgulho ferido. Não é isso. Os outros casos dizem que é preciso olhar para este de maneira que se possa não apenas criminalizar o agressor, tratar disso como um crime comum, mas pensar na questão do feminicídio e, evidentemente, na medida em que se discute, aprofundar o debate sobre o ódio machista contra as mulheres.”
Nilcea Freire, ex-ministra de Políticas para as Mulheres
Por Juliana Domingos de Lima