A poeta leu um texto que escreveu em 2017, inspirada em circunstâncias de afetividades entre ela e a líder estadunidense ao longo dos últimos anos
(Encontro Nacional de Mulheres Negras, 10/12/2018 – acesse no site de origem)
A escritora e ensaísta Conceição Evaristo proporcionou um momento de intensa emoção na solenidade de abertura do Encontro Nacional de Mulheres Negras 30 anos: Contra o Racismo e a Violência e Pelo Bem Viver – Mulheres Negras Movem o Mundo. Evaristo leu trecho de um texto que escreveu, por solicitação do suplemento Ilustríssima, da Folha de São Paulo, discorrendo algo que lhe trouxesse a memória de uma situação ou alguma pessoa marcante em sua vida, em sua juventude. E contou: “Angela Davis, lições para uma vida inteira.
É de longa data a experimentação e a confirmação de que ‘black is power, ‘is beautiful’ em minha cabeça e mente. Desde a minha juventude, ainda nos anos 70, na época, fui ganhando coragem e certeza para enfrentar os deboches dos estranhos, e a censura das pessoas mais próximas, ao me livrar do sacrifício de alisamento de meus cabelos. As meninas e jovens negras como eu, em tempos passados, não dispunham de qualquer indústria e de cuidados específicos para as nossas peles e cabelos. Seguíamos, então, com as nossas belezas modificadas no sacrifício do ferro quente de alisar cabelos. Conheci bem esse ingrato e doloroso tempo, que ainda não se desfez por completo. Foi então, que me surgiu Angela Davis, com a sua vasta cabelereira, símbolo de sua beleza e coragem.
Não me recordo exatamente como tomei conhecimento da existência dessa diva participante dos Panteras negras, da luta dos negros estadunidenses pelos direitos civis. Eu era uma jovem negra, moradora de uma favela belorizontina e tinha a militante afro-americana como minha ‘ídala’. Creio que recebi as primeiras informações sobre a luta dos direitos civis para os negros dos Estados Unidos do meu tio. Penso que foi ele também, Osvaldo Catarino Evaristo, que, primeiramente, me falou de Luther King, Carl Max, Malcom X e dos africanos Patrice Lumumba, Nelson Mandela e da cantora Mirian Makeba. Lembro de que, nas paredes caiadas de branco do meu pequeno quarto na casa da minha tia, rostos e gestos dessas pessoas sobressaíam moldando meus sonhos esperançosos de um futuro diferente. Quando eu contemplava a imagem de Angela Davis, com um enorme black power, o punho cerrado para cima, me fortalecia na audácia e na verdade daqueles gestos desenhados diante de mim. E fui assumindo a coroa armada de meu cabelo.
E como o tempo é circular, depois de tantas vindas de Angela Davis ao Brasil, em 2014, conheci, pessoalmente, essa minha contemporânea que me inspira tanto. Em Brasília, no Latinidades, na ocasião em que ela proferiu a conferência ‘Femininos negros e as lutas cordiais por equidade, tive a oportunidade de presenteá-la com a versão em língua inglesa, do romance Ponciá Vicêncio, de minha autoria. Pude também confidenciar a minha admiração desde cedo por ela. Confidência que foi feita muito mais por gesto do que por palavras. Meus conhecimentos do idioma inglês são apenas rudimentares. Enquanto uma amiga, Jurema Werneck, ia traduzindo parte de meu sentimento por estar, frente a frente, com a maior influenciadora ideológica de minha juventude, eu me perdia na contemplação do rosto dela. E percebia a atenção com que ela ouvia a fala de nossa intérprete, que apontava o meu cabelo, ainda black power, apenas amarrado, e que é uma lembrança da nossa juventude. A juventude aguerrida de Angela Davis desfilava diante de mim. O compromisso de sua luta, ao longo do tempo, pela dignidade, pela liberdade dos afro-americanos, notadamente, pelas mulheres, construía em mim, o discurso que eu não conseguia dizer e, muito menos, agora. A minha quase mudez era o efeito, muito mais, da emoção que eu experimentava e experimento diante dela, do que pela barreira da língua. Quando ela acolheu o meu desejo de abraço e o pedido de foto ao lado dela, consegui dizer bem baixinho, somente isso: “Muito obrigado, ‘my sister’. ”
O Encontro
O Encontro nacional de Mulheres Negras foi organizado por entidades do movimento social de mulheres negras. Desde março deste ano, ativistas do campo e da cidade, das periferias, quilombolas, religiosas de matriz africana, trabalhadoras domésticas, jovens e de todas as idades, se organizaram para a atividade em Gioânia. Elas se mobilizaram pela ampliação de parcerias e redes de fortalecimento, pela manutenção e conquista de direitos e pela convergência de esforços no embate a todas as formas de opressão e submissão da mulher negra no Brasil.
As mulheres negras no Brasil são 55,6 milhões, chefiam 41,1% das suas famílias e recebem, em média, 58,2% da renda das mulheres brancas, segundo o Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, séries históricas de 1995 a 2015 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE.
Por Juci Machado