Dados de pesquisas produzidas por diversas fontes vêm há anos evidenciando o peso do racismo na violência que atinge as mulheres negras no Brasil. Mais vulneráveis aos diferentes tipos e formas de violência de gênero, as mulheres negras também enfrentam maior risco de terem seus direitos violados pelo Estado, por ação direta ou omissão, depois que a violência já aconteceu.
Em entrevista ao Boletim Violência de Gênero em Dados, Jackeline Romio, doutora e mestre em demografia pelo Instituto de Filosofia e Ciência Humanas da Unicamp, destaca que essa produção de dados com recortes de gênero e raça/cor é fundamental para orientar a elaboração de políticas públicas efetivas de enfrentamento à desigualdade e à violência que impactam mais fortemente as mulheres negras no país.
Sabemos que a produção de dados sobre raça/cor é uma pauta antiga do movimento de mulheres negras. Você avalia que houve avanços nos últimos anos? Em que momento estamos?
Jackeline Romio: Há pelo menos 40 anos o movimento social de mulheres negras solicita que se produzam dados sobre raça/cor e as condições de vida da população brasileira. Dois momentos podem ser considerados fundamentais neste movimento. Primeiro, o início da aplicação do conceito de interseccionalidade, protagonizada por Kimberlé Crenshaw e, no no Brasil, por Sueli Carneiro e diversas outras pensadoras negras, que exigiam o cruzamento das variáveis raça e sexo para que a experiência da mulher negra fosse evidenciada. O segundo grande momento foi a inclusão da variável raça/cor nos documentos de saúde em 1996, protagonizado pelo movimento de saúde da população negra, em que se destacaram as pensadoras Jurema Werneck e Fernanda Lopes.
É importante dizer que, desde os primeiros censos modernos de 1940, as variáveis que coletam a raça/cor da população já estavam lá com suas categorias branco, preto e pardo; as categorias indígena e amarelo tiveram um processo mais recente, que hoje possibilita saber, além da raça, as etnias indígenas e as línguas.
Até os dias atuais, a definição da raça/cor da população brasileira ainda causa debates e oposições, muitas embasadas na ideia de que a classificação racial gera divisão do Brasil; porém, esta é uma ideia equivocada, já que saber e poder contar a população nas suas características ajuda a política pública a enxergar as brechas e desigualdades sociais, tornando os programas mais eficientes.
Outra questão que deve ser levada em consideração é a identidade étnico-racial como um direito, pois o reconhecimento da história e da cultura afrodescendentes é fundamental para mudar as normas sociais que criam a possibilidade de atitudes racistas e constrangimentos à população afrodescendente.
Considero que o momento atual pede análises sociodemográficas interseccionais que revelem o que estes anos de coleta da variável raça/cor podem diagnosticar sobre as situações de extrema desigualdade, como o caso das violências e da vulnerabilidade social à fome, por exemplo. Precisamos saber o que se passa com a população negra LGBTQI+, com as meninas negras que vivem em áreas rurais, enfim, a diversidade de condições interseccionadas que pode melhor apontar rotas para ações.
Na sua opinião, não produzir e divulgar dados sobre raça/cor é uma estratégia político-econômica? Quais são os maiores obstáculos para se produzirem esses dados?
Jackeline Romio: Não divulgar os dados por raça/cor gera políticas que não atingem quem foi deixado mais atrás. Sem a especificidade das condições, a medida leva em consideração a média e, como pode ser visto em diversos indicadores, a média nem sempre traduz a necessidade verdadeira da população por apagar os extremos, ou seja, o abismo social que separa o topo da pirâmide e a base que a sustenta. Um exemplo pode ser o efeito da Lei Maria da Penha, de 2006, na redução da violência contra a mulher. Quando se leva em consideração a dimensão étnico-racial é perceptível que a redução se deu para mulheres brancas, ao passo que a violência doméstica continuou sua escalada para as mulheres negras. Se considerarmos apenas a média para as mulheres, sem especificar raça, podemos chegar à conclusão de que a violência reduziu, quando na verdade ela se comportou de forma diferente segundo raça/cor. Isso se dá por diversos motivos, desde a falta de acesso à informação até o racismo institucional, que produz desigualdades na chance de conseguir um serviço de atenção a mulheres vítimas de violência.
Uma das faces mais cruéis da pandemia de Covid-19 foi o aumento da violência contra as mulheres, sobretudo as mulheres negras. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam que 62% das vítimas de feminicídio em 2021 eram mulheres negras. Mulheres pretas (28,3%) e pardas (24,6%) também foram mais expostas à violência em 2021. Como você interpreta esses dados?
Jackeline Romio: A violência contra mulheres é multifacetária e a violência racial interage com a violência de gênero — é a interseccionalidade das opressões. Durante a pandemia, houve muita confusão sobre os serviços de atenção e, inclusive, algumas instituições públicas fecharam suas portas, como os ministérios públicos e casas de atenção. Essa conjunção de situações, que expôs as contradições e desigualdades experimentadas pelas mulheres brasileiras, incrementou a violência para aquelas que estavam mais desassistidas pelos serviços públicos. Ou seja, expôs o enfraquecimento das instituições públicas de proteção a mulheres vítimas de violência e também o racismo institucional, que deixa de fora as mulheres negras ao não criar programas e políticas públicas específicas que levem em consideração o peso do racismo na violência de gênero.
Em sua tese de doutorado, você classifica a morte materna por aborto inseguro como “feminicídio reprodutivo”. Gostaríamos que você falasse mais sobre esse conceito e como ele se relaciona com a questão da justiça reprodutiva para as mulheres negras brasileiras.
Jackeline Romio: Na minha tese de doutorado, procurei desenvolver uma maneira de analisar a mortalidade feminina derivada da condição de gênero. Busquei aplicar o conceito do feminicídio, dos determinantes sociais da desigualdade em saúde e da interseccionalidade para criar uma estatística feminista que analisasse esse fenômeno desde um lugar onde a violência e a desigualdade em seus graus mais elevados produzem mortes evitáveis de mulheres, adolescentes e meninas brasileiras, sobretudo as que são mais vulneráveis por conta das multiplicidades de situações que enfrentam para assegurar seus direitos em saúde e segurança, seja devido à raça, idade ou condição socioeconômica.
Para tanto, isolei as mortes especificas de mulheres ligadas à violência de âmbito doméstico, familiar ou conjugal, tendo como unidade mínima de observação os assassinatos dentro do domicílio (feminicídio doméstico); as mortes ligadas à violência sexual com unidade mínima de observação os homicídios por meio de agressão sexual (feminicídio sexual); e as ligadas à reprodução no sentido procriativo, com unidade mínima de observação as mortes por aborto inseguro (feminicídio reprodutivo). Quando eu classifico a morte materna por aborto inseguro como “feminicídio reprodutivo” crio uma unidade mínima para a análise estatística da violência reprodutiva. Esse dado revela que essa mortalidade poderia ser evitada, pois, em comparação aos casos de aborto legal, estes não geram óbitos e deve ser encarado como um assunto de saúde pública e pode ser um bom parâmetro para avaliar algo muito maior que é toda a violência reprodutiva nas condições de saúde de mulheres, sobretudo negras, indígenas e pobres que se encontram em maior proporção entre as que morrem.
Sobre o Boletim Violência de Gênero em Dados
Realizado com apoio do Consulado Geral da Irlanda em São Paulo, o Boletim Violência de Gênero em Dados divulga mensalmente uma seleção de estatísticas e dados de estudos realizados por órgãos governamentais, institutos de pesquisa e organizações da sociedade civil, sobre os diversos tipos e formas de violência contra as mulheres, com curadoria da equipe do Instituto Patrícia Galvão. Saiba mais.