Dois terços dos casos de contrabando humano no Brasil são para exploração sexual

15 de março, 2016

(UOL, 15/03/2016) Nem todas as meninas podem ter a “sorte” da adolescente Camila*. Levada de casa em Tabatinga (AM) por uma amiga cinco anos mais velha para assistir a uma apresentação da banda Calypso, na noite de 16 de novembro de 2015, a adolescente de 12 anos conseguiu voltar para a família três semanas mais tarde. Antes, perambulou por cinco dias pelas ruas de Letícia, na fronteira da Colômbia com o Brasil, e acabou recolhida pelo Instituto Colombiano de Bem-Estar Familiar. Foi parar na lista de crianças disponíveis para adoção –medida comum no país vizinho, que não tolera a presença de menores abandonados nas ruas.

Barcos regulares que fazem a rota entre Tabatinga e Benjamin Constant (AM) não exigem nenhuma documentação dos passageiros

Barcos regulares que fazem a rota entre Tabatinga e Benjamin Constant (AM) não exigem nenhuma documentação dos passageiros (Foto: Cacalos Garrastazu/Eder Content)

Às 9h53 do dia 7 de dezembro, depois de uma severa intervenção do Conselho Tutelar de Tabatinga, Camila foi devolvida aos pais e aos irmãos mais novos mediante uma série de compromissos assumidos junto à Justiça colombiana – entre eles o fortalecimento dos laços familiares e a manutenção de um ambiente doméstico de “compreensão, afeto e segurança”. Assustada, a menina esboçou apenas alguns sorrisos constrangidos durante a audiência, de mais de 40 minutos.

Ainda assim, voltar para casa seria melhor que o possível destino reservado à adolescente, mesmo num suposto processo de adoção. Camila, na verdade, estava sendo vítima de traficantes de pessoas: depois de aliciada pela suposta amiga, provavelmente iria de forma clandestina para a República Dominicana ou para o Suriname e, dali, para a Europa –notadamente Suíça ou Portugal.

Trata-se de um caminho conhecido na região Norte do país, a mais visada pelas quadrilhas que roubam pessoas para vendê-las com fins econômicos no exterior –o crime que mais cresce no país desde 2011, segundo a estatística oficial. O mais comum é a exploração sexual (cerca de dois terços dos 545 casos identificados pelo Ministério das Relações Exteriores desde 2005), mas há também ocorrências de trabalho escravo, mendicância forçada e até remoção de órgãos.

Marco da fronteira entre Brasil e Colômbia, onde não há fiscalização e o tráfico de drogas e de pessoas é comum (Foto: Cacalos Garrastazu/Eder Content)

“Se não conseguisse fugir, certamente seria envolvida em tráfico de drogas ou prostituição. Outra possibilidade seria enfrentar um casamento servil, em que o abuso sexual é combinado com o trabalho doméstico forçado. Casos muito comuns aqui na região, infelizmente”, relata o presidente do Conselho Tutelar de Tabatinga, Raimundo Araújo Campos. Como Camila não tinha nenhum documento de identidade em seu nome, a tarefa de tirá-la do Brasil seria bastante simples.

O número oficial de ocorrências, entretanto, está longe de revelar a dura realidade do problema, como reconhece o próprio governo federal. No último Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas disponível para consulta, com dados de 2013, há a advertência expressa de que se trata “tão somente dos casos que chegaram ao conhecimento dos postos consulares” do Brasil no exterior. Naquele ano, foram computadas 62 denúncias de brasileiros traficados para outros países.

A maioria das vítimas dos traficantes na região Norte são meninas, como Camila, ou mulheres jovens, até 21 anos, que frequentemente acabam subjugadas pela própria família em troca de um motor de barco ou um telefone celular. A adolescente aceitou acompanhar uma amiga de 17 anos que mal conhecia devido ao histórico familiar de agressão e de trabalho forçado. O pai, Maik Rodriguez, vendedor ambulante, obrigava a menina a traficar cocaína e crack com a aprovação da mãe, Balbina Pineda Silva. O bairro onde moram, Santa Rosa, é um conhecido ponto de tráfico de drogas de Tabatinga. Além disso, a adolescente era vítima frequente de violência familiar e de abandono, como comprovam os autos do processo colombiano –num desses relatos, a menina contou à defensora pública Laura Zabaleta Romero que a mãe quebrou um cabo de vassoura na sua cabeça. Desde setembro não ia à escola devido a um relato não investigado de abuso sexual por parte de um colega.

O trabalho de defender a infância da região amazônica, a porta de saída mais visível do Brasil para o crescente tráfico de pessoas, é exaustivo. Campos e seu assistente, Ruben Darío, passaram a manhã do dia 7 de dezembro envolvidos no resgate da menina. Há 20 dias eles monitoravam o caso a partir da denúncia dos pais, que negaram as agressões e o tráfico de drogas. Mas acabaram aceitando os termos do acordo, baseado em “evidências eloquentes”. Segundo Campos, demandas como a que envolveu a família de Camila “são diárias”.

“O Conselho Tutelar não é levado a sério aqui. Já alertamos sobre a presença de mais de 200 crianças ou adolescentes na rede de tráfico na região, mas a polícia só investiga se houver denúncia. O que é difícil de ocorrer, mesmo com a garantia de anonimato. Essas crianças estão literalmente no caminho da morte”, lamenta o conselheiro substituto Ruben Darío. Embora o problema seja de grande magnitude, a Rede de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas na Fronteira, que reúne autoridades de cinco municípios nas divisas entre Brasil, Peru e Colômbia, contabilizou apenas 30 denúncias de aliciamento de menores em 2014 e outras 18 em 2015 na região de Tabatinga –uma estatística distante da realidade. Longe de ser uma boa notícia, a redução nos registros de um ano para outro mostra que o medo da violência dos traficantes impressiona a população majoritariamente pobre da região, mais exposta ao terror.

“É preciso um diagnóstico melhor para lidar com esse problema. Mas as pessoas ficam descrentes, de um lado porque as polícias não investigam, no Ministério Público falta alguém que possa responder, os juízes não estão presentes, as denúncias não têm desdobramentos. De outro, porque a política do medo imposta pelos traficantes virou uma arma. O povo vive aflito. Aqui todo mundo sabe quem mata e sabe quem morre”, lamenta o frei Paulo Xavier Ribeiro, coordenador da Rede.

Na última vez em que fez contato com o Conselho Tutelar de Tabatinga, no final de fevereiro, a reportagem foi informada de que Camila, embora matriculada, continuava sem frequentar as aulas do ensino fundamental. Também tinha voltado, segundo o Conselho Tutelar, a vender drogas para o pai nas ruas da cidade.

*O nome foi trocado para preservar a identidade da adolescente

Flávio Ilha

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