Entrevista: lei do feminicídio deu visibilidade à morte por gênero

03 de abril, 2017

“Se não fosse a Dilma, o feminicídio não teria virado lei no Brasil. O impeachment não apagou o fato histórico do Brasil ter escolhido uma mulher para presidente por duas vezes. Admito que ela foi um tanto inábil em certas ocasiões e até mesmo incompetente para lidar com determinados assuntos, mas admito também que o Brasil é um País de golpistas, aproveitadores e corruptos.”

(Jornal Cruzeiro do Sul, 03/04/2017 – acesse no site de origem)

Luiza Nagib Eluf é procuradora de Justiça do Ministério Público paulista aposentada e milita pelo fim da violência contra a mulher

Foi assim, com veemência, que a Procuradora de Justiça do Ministério Público paulista aposentada, Luiza Nagib Eluf, respondeu a questionamenLuiza Nagib Elufto do Cruzeiro do Sul sobre o fato do Brasil ter eleito pela primeira vez uma mulher para a Presidência da República que se tornou, também, a primeira a ter o mandato cassado. “A presença (de Dilma) no cargo máximo da Nação foi muito importante para as mulheres”, destacou.

Autora de sete livros, entre eles A paixão no banco dos réus, e integrante da Comissão de Revisão do Código Penal, além de ter comandado a Secretaria Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (1995), Luiza Eluf fala, nesta entrevista, sobre a violência de gênero, classifica como “profundamente machistas” as declarações do presidente Michel Temer que este ano, no Dia Internacional da Mulher, deu ênfase aos atributos domésticos da própria esposa.

Cruzeiro do Sul – Números do Mapa da Violência revelam que em Sorocaba a cada 40 dias uma mulher morre por ser mulher. Num contexto geral, a que atribuir tanta violência contra a mulher?

Luiza Eluf – A violência contra a mulher é ainda muito maior do que esse dado que você menciona. Nem todos os casos de feminicídio são devidamente notificados; nem só de assassinatos vive a violência contra a mulher; o homicídio é apenas o lado mais radical dessa violência, que começa com o espancamento cruel, evolui para o estupro e desemboca no homicídio. Para mim, as razões dessa violência são muito claras: o Brasil é patriarcal desde que Cabral descobriu nossas terras; os colonizadores não pouparam esforços para dizimar os índios, estuprar as índias, escravizar os negros e praticar todo o tipo de violência necessária para dominar o território. A violência é parte de nossa cultura. O patriarcalismo veio com os colonizadores, que adotaram no Brasil as Ordenações Portuguesas (Afonsinas e Manoelinas), tirando todos os direitos civis das mulheres, sem dó nem piedade. Até hoje, carregamos conceitos medievais em nossa cultura. As nossas leis foram reformadas e estão muito bem agora, mas falta saírem do papel para a vida real.

CS – O que precisaria ser feito para mudar a realidade da violência de gênero no País?

LE – Ainda falta tudo. As Delegacias de Defesa dos Direitos da Mulher (DDMs) precisam funcionar melhor, ter um corpo de funcionárias mais numeroso, abrir durante as 24 horas do dia, contar com as Casas Abrigo (locais para onde as vítimas de violência podem se mudar por até seis meses, com endereço sigiloso, a fim de interromper o ciclo de violência), fazer com que as medidas protetivas da Lei Maria da Penha sejam de fato eficientes, com pronto atendimento em caso de violação por parte do agressor.

CS – A Lei Maria da Penha e a regra que criou a figura do feminicídio contribuíram para inibir os efeitos da violência de gênero?

LE – A Lei Maria da Penha é maravilhosa, foi um grande avanço na defesa dos direitos da mulher e no combate à violência de gênero. Só precisamos aparelhar melhor o Estado para que a lei se torne mais eficaz. De qualquer forma, a lei teve e tem um papel inibidor para o agressor e fortalecedor para a vítima. Hoje, as mulheres que querem romper o ciclo da violência doméstica já podem contar com o apoio do Estado. A tipificação do feminicídio também foi muito importante, não só para dar visibilidade a esse tipo de assassinato, como também para impor penas mais severas para quem mata mulher por ser mulher.

CS – As mulheres ainda sofrem com a discriminação e lutam por igualdade de tratamento. Essa luta tem alcançado os seus objetivos?

LE – A discriminação contra a mulher é violência também. Tudo isso faz parte da chamada “violência de gênero”. O preconceito existe para consolidar a opressão, é tudo a mesma coisa. As restrições impostas às mulheres no mercado de trabalho são o mesmo que o espancamento, o assassinato. Todas essas condutas e outras mais são facetas da dominação do homem sobre a mulher. É contra isso tudo que lutamos.

CS – Cobra-se muito a participação da mulher na política. Por que é tão difícil para a mulher assumir o protagonismo político?

LE – Existe uma barreira política, imposta pelos homens, para barrar o avanço das mulheres em cargos de poder. Nas sociedades patriarcais, o homem manda através do dinheiro e da força. No final, as cotas para mulheres nos partidos ajudaram muito pouco. Não adianta ter a legenda partidária se não há dinheiro nem apoio para fazer a campanha.

CS – Ainda é grande a resistência da mulher em denunciar seu agressor?

LE – É preciso entender que a mulher, em geral, não “resiste” à toa, ela tem medo! Muito medo! Os homens são assassinos de mulheres e elas sabem disso. As vítimas nem sempre contam com o apoio de familiares e amigos. Por vezes, os familiares morrem junto com elas! O Estado não consegue dar a proteção que deveria, todos começam a correr riscos, a situação não é simples como pode parecer.

CS – O Brasil elegeu pela primeira vez uma mulher para a Presidência da República. E ela também foi a primeira mulher a ter o mandato cassado. Até que ponto isso frustrou as expectativas do segmento feminino?

LE –Não posso afirmar quais teriam sido as expectativas do segmento feminino no geral, mas posso falar em nome próprio, sobre as minhas expectativas: eu queria muito que o governo de Dilma tivesse dado certo até o final. Mesmo não sendo petista, torci muito por ela e acredito que sua presença no cargo máximo da Nação foi muito importante para as mulheres. Se não fosse a Dilma, o feminicídio não teria virado lei no Brasil. O impeachment não apagou o fato histórico de o Brasil ter escolhido uma mulher para presidente por duas vezes.

Admito que Dilma foi um tanto inábil em certas ocasiões e até mesmo incompetente para lidar com determinados assuntos, mas admito também que o Brasil é um País de golpistas, aproveitadores e corruptos. Nosso maior problema é a ignorância. Precisamos de educação, de pessoas aprendendo muito nas escolas, lendo, estudando, se informando, tomando ciência do que é o mundo. A ignorância nunca é boa conselheira.

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