As justificativas do assassino Sidnei Ramis de Araújo, 46 anos, autor da chacina ocorrida na festa de ano novo em Campinas, interior de São Paulo, matando a ex-mulher Isamara Filier, 41 anos, e o próprio filho João Victor, 8 anos, e mais 10 pessoas, ganharam eco nas redes sociais e em sites de notícias – as alegadas razões do homicida para cometer o crime premeditado foram encontrou quem “compreendesse seus motivos”.
(Sul 21, 04/01/2017 – acesse no site de origem)
Em sua carta, divulgada na imprensa, o assassino esbravejou discurso de ódio contra as mulheres em geral e especificamente contra a ex, a quem culpava por ter perdido a guarda do filho.
A repercussão na internet brasileira não surpreendeu Juliana de Faria, fundadora da ONG Think Olga. “A internet é só um amplificador do que nós somos como sociedade. Nós somos uma sociedade machista em que a violência contra a mulher é legitimada, normalizada e entendida como algo do dia a dia”, analisa.
Juliana pondera que a mulher sofre diariamente diversos tipos de violência, como a sexual e a doméstica e, apesar de não se assombrar com o discurso de ódio que circulou nas redes sociais, acredita que ao menos seja um avanço a palavra feminicídio passar a ser usada para definir crimes bárbaros como o ocorrido em Campinas.
“É muito bom que a gente possa dar nome para as coisas como elas de fato são. Por muito tempo chamávamos isso de crime passional, legitimando a violência e tratando-a como algo só de ciúme; e agora podemos chamar de feminicídio, que é a mulher ser assassinada pelo simples fato de ser mulher. Porque como sociedade isso já é normalizado, a culpabilização da vítima é corriqueira.”
O papel da imprensa
Para a fundadora da Think Olga, a forma como a imprensa abordou o caso também foi problemática, principalmente pela divulgação da carta do assassino. “A carta tem um cunho de manifesto. É terrorismo misógino. Você instiga a culpabilização da vítima, permitindo essa violência como se estivesse exterminando um grupo que é entendido como culpado pelas coisas ruins da vida”, afirma.
Também jornalista, com passagem pelo jornal O Estado de S. Paulo, Juliana de Faria critica a ausência de contextualização e “do outro lado” em algumas reportagens que noticiaram o crime. “Quando você divulga isso (a carta), fica parecendo como ‘é um homem, machucado, que está buscando seus direitos de não parecer um frouxo porque não batia nela e agora ele vai exterminar tudo”, analisa, acrescentando que demorou um tempo até se saber que a vítima já havia registrado boletins de ocorrência contra o ex-marido e que havia uma acusação formal contra o pai por ter abusado sexualmente do filho.
Segundo Juliana, a falta de dados sobre feminicídio e violência doméstica nas reportagens também é um erro. “Senão fica só uma informação solta em que as pessoas se apegam. O discurso da carta não é único, não é que nunca apareceu antes, pelo contrário, já está inserido em filmes, músicas e comentários de internet. A carta sem contexto só legitima essa violência. O jornalismo não é só mensageiro, é mensagem. É nosso papel adequar a mensagem para também educar as pessoas, para que a gente pare de normalizar essa violência, essas desigualdades e situações que são criminosas e fatais. Estamos falando de machismo e misoginia. É muito difícil ter empatia com essa minoria que são as mulheres. É um trabalho de educação e humanização dos grupos minoritários. É uma consequência da desumanização das mulheres, você não enxerga mais a mulher como ser humana, assim como grupos minoritários em geral.”
Em entrevista para a Rádio Brasil Atual, a psicóloga Rachel Moreno, coordenadora do Observatório da Mulher, apontou a falta de legislação específica no Brasil para inibir o discurso de ódio na internet. “O Brasil é um país que não tem legislação que puna o estímulo ao ódio. Não estou falando de controle da internet, queremos que ela seja livre, mas quando há o estímulo ao ódio tem que haver punição e no Brasil não há. Isso aumenta e se multiplica principalmente nas mídias mais modernas.”
Assim como a fundadora da ONG Think Olga, Rachel também inclui a postura da mídia em sua crítica sobre a banalização da violência contra a mulher. “Na maior parte da grande mídia você tem um discurso bonito que reproduz e naturaliza a violência, que nos habitua a um nível maior de violência e que repete os estereótipos o tempo todo.”
A coordenadora do Observatório da Mulher lembra que recentemente se tentou incluir o tema das questões de gênero nos planos educacionais da esfera federal, estadual e municipal, intenção derrotada por maior força das bancadas conservadoras nos parlamentos. “E eles ainda estimulam os pais a denunciar o professor ou a escola que resolver ousar discutir qualquer questão. Isso tudo tem que ter um espaço para ser discutido e desnaturalizado. A escola é o espaço ideal e a mídia o segundo, porque reproduz isso e é uma educadora informal extremamente poderosa.”
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil ocupa o quinto lugar no mundo em feminicídio, com uma taxa de 4,8 crimes para cada 100 mil mulheres. Já o Mapa da Violência de 2015 revelou que do total de feminicídios registrados em 2013, 33,2% dos homicidas eram parceiros ou ex-parceiros das vítimas.
Desde março de 2015, a Lei 13.104 tipifica o feminicídio no Código Penal brasileiro, definindo-o como crime “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. A lei estabelece que “há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I – violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
Luciano Velleda
Da RBA