(Jota, 24/06/2016) Jair Bolsonaro odeia Maria do Rosário. Não porque ela integre partido político de oposição ao dele, não porque ela foi ministra da extinta Secretaria de Direitos Humanos, não porque ela é contra a redução da maioridade penal ou quer a devida responsabilização quanto aos crimes cometidos pela ditadura militar. Bolsonaro não odeia Maria do Rosário porque ela é a favor das cotas para negros ou porque defende a família plural. Bolsonaro odeia Maria do Rosário porque ela é mulher.
Por misoginia, por enquanto, Bolsonaro é apenas réu. A primeira turma do STF recebeu denúncia referente à incitação ao crime de estupro e queixa-crime quanto ao crime de injúria contra o deputado federal, o que é uma boa notícia para a efetivação dos direitos fundamentais. Todavia, não sabemos qual será a decisão final do STF quando do julgamento final da ação.
Do ponto de vista constitucional, a inauguração dessas ações penais é decisiva para os contornos do que compreendemos como imunidade parlamentar material, mas o caso é realmente importante para a materialização dos direitos fundamentais das mulheres.
No julgamento que recebeu as referidas denúncia e queixa-crime, o ministro Marco Aurélio divergiu do voto do Relator. Marco Aurélio foi o único ministro que considerou as palavras de Bolsonaro como protegidas pela imunidade material de seu cargo de deputado federal. Em que pese seu histórico de divergências e sua posição minoritária no caso, não se pode desconsiderar as razões da discordância do Ministro, elas revelam como a banalização da violência contra a mulher é forte inclusive nos discursos jurídicos. Ao votar, o ministro Marco Aurélio disse que a declaração de Bolsonaro de que a deputada Maria do Rosário não merecia ser estuprada foi um “arroubo de retórica, uma metáfora”.
Por entender que o uso foi apenas retórico, parece que o Ministro compreendeu que Bolsonaro usou do estupro para argumentar, para expressar com vigor sua discordância em relação à Maria do Rosário. Marco Aurélio não viu crime nas declarações de Bolsonaro, viu ali uma metáfora.
Metáfora é “comparação abreviada”. Qual seria então a comparação?
Para expressar sua opinião, Bolsonaro teria usado o desprezo do estuprador pela vítima como comparação para expressar o desprezo que sente por Maria do Rosário. Se compreendemos o sentido da metáfora, para o ministro Marco Aurélio, Bolsonaro não seria misógino, não teria desprezado as mulheres e incitado a violência ao mencionar a possibilidade do estupro. Bolsonaro teria apenas feito uma comparação forte e, amparado pela imunidade parlamentar, não haveria crime algum.
Maria do Rosário não é a única mulher que Bolsonaro odeia. Outra “metáfora” do deputado foi a tortura, outra vítima foi a Presidenta Dilma Rousseff. Ao votar pelo recebimento do processo de impeachment, Bolsonaro invocou Brilhante Ulstra, “o terror de Dilma Rousseff”. Novamente, a palavra veio para encorajar o ato. Estupro e tortura, palavras que carregam a naturalidade da violência contra a mulher e contra essas mulheres, seriam apenas metáforas na interpretação de Marco Aurélio.
Vale lembrar que o caso Bolsonaro não é o único em que o ministro Marco Aurélio decide pelas imunidades quando em jogo direitos fundamentais das mulheres. Para o Ministro, também a imunidade funcional salvaguarda atos de ódio. No Mandado de Segurança 30320/DF, o Ministro concedeu liminar para suspender decisão do CNJ que havido imposto pena de disponibilidade a juiz de direito que, ao declarar incidentalmente inconstitucional a Lei Maria da Penha, atentou contra a dignidade do cargo ao usar linguagem discriminatória na sentença.
Entre outras coisas, o juiz disse que a lei Maria da Penha era um conjunto de regras diabólicas que se vingasse, colocaria a família em perigo. Disse que a desgraça humana teria começado no Éden: por causa da mulher. Foi expresso ao dizer que o mundo é masculino e assim deveria permanecer. O Ministro Marco Aurélio entendeu que as referências discriminatórias eram parte da concepção individual do magistrado, não merecendo punição.
Imunidade parlamentar ou imunidade funcional, a diferença não importa. Para o ministro Marco Aurélio, juízes e deputados são imunes para odiar as mulheres, suas palavras são sempre tomadas como figuras de linguagem que não ensejam responsabilização. Nesses casos, seus votos ilustram um problema comum tanto às palavras dos congressistas quantos a dos juízes: a banalização da violência contra as mulheres.
Imunidades são dispositivos constitucionais desenhados para garantia de independência, quando seu uso se transveste em arma para discriminar, não há retórica ou metáfora, há crime. O caso Bolsonaro ainda não terminou, o caso do juiz misógino também não. Por isso, devemos seguir atentas. Atentas à banalização da violência contra a mulher escondida nas palavras dos congressistas e também nas dos juízes.
Janaína Penalva é Professora de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília/UnB, membro da Coordenação do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação/UnB
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