(Folha de S. Paulo, 15/08/2015) “The New York Times” publicou na última quinta-feira uma impressionante reportagem sobre o mercado de escravas sexuais desenvolvido pelo Estado Islâmico (EI). O âmago do artigo é que o EI, não só reavivou uma instituição que imaginávamos sepultada, como ainda fez um esforço interpretativo para tentar justificá-la teologicamente.
Foram entrevistadas dezenas de mulheres e meninas da etnia yazidi (grupo religioso não islâmico ao qual pertence a maior parte das vítimas) que conseguiram escapar do cativeiro e elas contam como seus proprietários rezavam antes e depois de estuprá-las e, quando questionados acerca da moralidade do ato, respondiam que aquilo era “halal”, isto é, permitido aos olhos de Deus. A escravidão, afinal, é sancionada pelo Alcorão (e pela Bíblia, vale lembrar), e yazidis são descritos pelo pessoal do EI como adoradores do diabo.
Como milhares de homens que se intitulam bons muçulmanos –e, até onde se sabe, não são psicopatas– conseguem escravizar meninas, estuprá-las diariamente e achar isso certo? Que força faz uma pessoa suprimir qualquer traço de empatia que, ainda que em doses variáveis, faz parte do arsenal de emoções humanas? A resposta é “religião”, que é um caso particular do fenômeno mais geral conhecido como ideologia.
E a ideologia é a mais cruel das causas de violência identificadas pelos sociólogos. Se eu mato alguém para ficar com suas posses ou para mostrar que sou mais forte, estou apenas exercendo poder, sem atribuir-lhe uma carga moral. Mas, quando tiro a vida de uma pessoa e afirmo que fazê-lo é necessário para louvar o Criador ou para fundar o paraíso terrestre, transformo a violência num valor positivo. E é isso que possibilita massacres. O sujeito que mata por dinheiro tende a ser um solitário, o que invoca Deus ou a pátria é que arregimenta as multidões necessárias para produzir as tragédias de proporções históricas.
Acesse o PDF: Estupro divino, por Hélio Schwartsman (Folha de S. Paulo, 15/08/2015)