Estupro: Precisa ver para crer?

06 de junho, 2016

(UOL Tab, 06/06/2016) “Quero um dia sem estupro!” O cartaz que pede o mínimo não pode ser uma utopia. O basta na cultura do estupro chega à praça pública com muitos desafios – entre eles, expor o crime à exaustão e poupar a vítima de mais violência.

A verdade é que se trata de uma equação cruel.

Para ser combatido, o estupro precisa ser exposto.

Mas a exposição, hoje, só vem quando o crime foge do “comum”.

Quantos casos como o estupro coletivo ocorrido no Rio são necessários para o tema ganhar espaço definitivo nas rodas de conversa?

Quantas atrocidades como as do Piauí até ocorrer uma mudança na forma de encarar o problema?

Quantas vítimas como a indiana Jyoti Singh, morta aos 23 anos após ser estuprada por seis homens a ponto de ter os intestinos arrancados, para calar o “estava pedindo”?

A sociedade precisa mesmo de mais mártires?

Há a necessidade de mais mortes – e não apenas no sentido literal?

Da forma como lidamos até agora, sim.

Da forma como se quer tratar a questão daqui para frente, não.

Existe um consenso de que é preciso falar sobre e denunciar essas agressões usando ao máximo a exposição pública como arma poderosa para combatê-las – ainda que pesem os efeitos colaterais dessa vitrine. Há também uma sensação de que se chegou ao limite, aquele ponto em que não dá para aceitar das gracinhas aos estupros, passando por inúmeras formas de assédio (é verdade: toda mulher tem uma história dessas para contar). Vai ter reação, sim, avisam aqueles que querem a mudança. Mas, para isso, é preciso manter os holofotes voltados à violência sexual, um problema escondido por séculos no quartinho dos fundos da história.

O desafio de fazer barulho é grande, considerando a estimativa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada): só 10% das tentativas ou casos de estupros no Brasil são reportados. Se as notificações são poucas, muito menor é o número de crimes que chega ao conhecimento do público. E a mobilização só surge em situações extremas, como se “apenas” uma agressão sexual não merecesse atenção. Para ter destaque, precisa ir tragicamente além, como no caso da adolescente vítima de estupro coletivo no Rio – há a suspeita de 33 homens terem cometido o crime -, ou quando há um ano, em Castelo do Piauí (PI), quatro vítimas de estupro coletivo apanharam, foram atiradas de um penhasco e, depois, apedrejadas. Uma delas, de 16 anos, morreu.

“Há um grau de cinismo, de hipocrisia, que nos faz suportar o cotidiano fingindo que certas barbaridades não estão acontecendo. Até que um megaescândalo [como o do Rio] vem à tona e começamos a prestar atenção em coisas que já existiam. Infelizmente funcionamos nesses sustos, nesses episódios que acabam rompendo com o cinismo e a hipocrisia”, analisa Bruno Paes Manso, jornalista do site Ponte e pesquisador do NEV-USP (Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo). Daí a importância, ressalta, de o tema nunca sair do foco. Mesmo essas notícias sendo desagradáveis. Informações que as pessoas preferem não saber e que recebem pouca atenção se comparadas a revelações estilo “Caetano estaciona carro no Leblon”.

A chave da mudança está em deixar de tratar como privado um assunto público. Na prática, desconstruir de vez ladainhas como “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. “Essa ideia permitia que as mulheres apanhassem e ficassem quietas. Quando se assumiu que era preciso meter a colher, sim, que esse era um tema público, começaram as discussões para punir o marido e evitar que ele se achasse dono da mulher”, compara Manso. Hora, então, de tirarmos todos os talheres da gaveta para rever a forma como lidamos com as agressões sexuais – da cantada agressiva tratada como “brincadeira” até o silêncio diante de um estupro.

A delicadeza do tema faz com que essa exposição exija muito, mas muito cuidado. Olha o paradoxo. O crime do Rio veio a público por causa de um vídeo de 38 segundos, gravado e postado em uma rede social por um dos suspeitos. Conhecidos e parentes da vítima – inclusive a avó materna – assistiram à cena em que ela aparece nua, desacordada e violada. Não se pode imaginar uma exposição maior do que essa, uma agressão que humilha e traumatiza a vítima. Por outro lado, a gravação foi a prova do estupro coletivo (o exame de corpo de delito, feito quatro dias após o crime, não apontou indícios de violência). Sem as imagens, talvez o caso fosse abafado e o debate e a consequente mobilização não teriam acontecido. Mas veja o altíssimo preço que essa jovem pagou por alguma justiça que, sabe-se lá, um dia venha a acontecer.

Não se trata de um caso isolado: na sociedade do espetáculo, muitos criminosos registram e divulgam suas ações. A grosso modo, há uma mistura de falta de noção sobre o alcance do conteúdo, narcisismo e sensação de impunidade. No caso do estupro, há ainda a possibilidade de ameaça: “se denunciar, eu divulgo”. A boa notícia – se existe algo positivo aqui – é o fato de esses registros ajudarem na punição. Em 2013, a Justiça norte-americana condenou dois estudantes de Steubenville (Ohio) por estuprarem uma conhecida de 16 anos. Em seu depoimento, a vítima disse ter acordado nua, em um porão onde estavam os dois jovens, sem saber o que tinha acontecido. As pistas só vieram quando amigos relataram ter visto a agressão em fotos e vídeos, usados como provas do crime.

É preciso expor o problema, mas nunca a vítima – cabe essa premissa mesmo se esse for o desejo dela. Isso inclui não compartilhar o conteúdo difamatório, ainda que seja no intuito de alertar. As denúncias devem ser feitas aos órgãos competentes, e a identidade precisa sempre, sempre ser preservada. “A forma como os casos são divulgados tem efeitos atrozes. Não falam nomes, mas facilitam a identificação ao mencionar onde a pessoa estuda ou trabalha. Às vezes, identificam vizinhos ou amigos. Nada disso é necessário ou de interesse público, e muito menos deveria ser utilizado para criar mártires”, critica Cynthia Semíramis, pesquisadora sobre a história dos direitos das mulheres e doutoranda em direito na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Mártir é uma palavra pesada, porém apropriada para a história a seguir. Há dez anos, a jornalista Rose Leonel teve suas fotos íntimas divulgadas por um ex-namorado que não aceitou o fim do relacionamento. Essa exposição devastadora apresentou para muitos, inclusive para Rose, um crime até então desconhecido: o pornô de vingança. O acusado – condenado em 2013 a pagar R$ 30 mil de indenização – criou sites, blogs, mandou e-mails, distribuiu CDs e espalhou panfletos em Maringá (PR) com fotos e montagens da ex-companheira. “Custou minha vida, fui queimada viva. É um preço que ninguém quer pagar, nunca quis isso para mim, mas a bandeira veio para minhas mãos.” Criadora da ONG Marias da Internet, de apoio a mulheres vítimas de crime cibernético, hoje ela reforça o coro na luta pela igualdade de gênero e fim da sociedade machista.

Seja no caso de Rose, dos estupros aqui citados ou das inúmeras agressões sexuais que jamais conheceremos, esses crimes têm em comum a inversão da culpa. Numa distorção recorrente, a vítima se sente envergonhada por ser parte da ação (da qual foi VÍTIMA, como vale reforçar até que se entenda de vez). Rose conta que perdeu o emprego, sofreu exclusão social, preconceito e todo tipo de julgamento – assim como seus amigos, seus pais e seus filhos. Isso sem falar nas chacotas e piadas, também recorrentes. Esse tipo de “brincadeira” se espalha das formas mais chocantes – a mãe de uma menor estuprada por 13 homens, em Osasco (SP), contou ao site “G1” que colegas de escola passaram a cumprimentar a vítima com um “e aí, estuprada?”

Se o clima é de descontração, olha que engraçado (só que não). Em 2014, uma estudante chamada Jada, então com 16, foi vítima de agressão em Houston (EUA). De novo, circulou a foto da vítima nua e desacordada. Desta vez a imagem virou meme, com hashtag e tudo: #jadapose

Para identificar fotos.

Que imitavam a pose.

De uma vítima.

Fotografada nua.

Desacordada.

Possivelmente dopada.

Com a suspeita de ter sido estuprada.

De novo, ela só soube de tudo o que aconteceu por causa da divulgação das imagens – não há confirmação de estupro, mas um suspeito foi detido e acusado de crimes sexuais (não especificados). A garota, que não teve o sobrenome divulgado, mostrou seu rosto, deu entrevistas na TV e reagiu com a hashtag #iamjada (sou Jada). “Meu conselho [para outras vítimas] é que rezem e exponham o que aconteceu. Falem a verdade. Não me arrependo [da exposição], pois eu precisava que minha história fosse ouvida”, disse em entrevista à “MSNBC” .

Quantas Jadas até a brincadeira perder a graça?

Este momento parece propício para o grito de basta. Diante de tanta agitação, no entanto, corre-se o risco de entrar numa histeria (usando justamente o argumento dos machistas) que faça outros tipos de vítimas. Uma coisa é fazer barulho, incentivar denúncias e aderir a hashtags para expor o problema, como no caso das bem-sucedidas #chegadefiufiu e #primeiroassedio. Outra é aproveitar a força do movimento para expor alguém, às vezes num momento de desentendimento e raiva. Se a briga é por igualdade, não se pode perder o foco: injustiça é injustiça, seja contra mulheres ou homens.

Olha o perigo. Em 2014, a revista “Rolling Stone” entrevistou a suposta vítima de um estupro coletivo na Universidade de Virginia (EUA). A notícia causou comoção, claro: uma caloura foi violentada por sete homens (não identificados na reportagem) durante uma festa de faculdade. Quem a levou para o quarto, a cena do crime, foi o crush que ela vinha paquerando havia alguns meses – o mesmo que encorajava os outros homens, enquanto a estupravam. Uma história dolorosa. Mas era mentira. Uma série de inconsistências comprovou que o crime não aconteceu, e a publicação teve de se retratar.

Agora imagina se os suspeitos tivessem sido apontados em reportagens e redes sociais afora, com a exposição de seus nomes, fotos e tudo mais?

O risco cresce quando associado à velocidade da internet. Algumas denúncias andam passando por nossas timelines e, no reflexo da curtida, acabam sendo tomadas por verdadeiras. Respire fundo e entenda que isso não pode acontecer. “A vítima nunca deve expor outro indivíduo com prints de telas, trocas privadas de mensagens, dados pessoais e links de perfil. Não podemos agir no ‘olho por olho, dente por dente’. Se isso acontecer, o responsável pela divulgação pode responder por calúnia, que é imputar um crime sem que a pessoa tenha sido condenada”, explica Gisele Truzzi, especialista em direito digital da Truzzi Advogados. No site do projeto feminista Think Olga, Gisele ensina como agir em caso de violência cometida pela internet.

Se o objetivo é manter o debate aceso, muitos questionamentos virão: inclusive em relação ao tom da briga. Cynthia Semíramis, por exemplo, se diz cautelosa em relação ao termo cultura do estupro, que foi criado há mais de 40 anos nos Estados Unidos. “De lá para cá tivemos várias transformações sociais e a legislação mudou em relação à liberdade sexual. Hoje não interpretamos o crime de estupro da mesma forma e estamos mais atentos para vieses que possam prejudicar a vítima. A militância, no entanto, repete o discurso feminista daquela época e local, sem adaptá-lo para o contexto brasileiro atual”, afirma. Exemplo é a defesa do conceito que todo homem deve ser tratado como estuprador em potencial. Uma generalização vazia e problemática, segundo a pesquisadora, que tira a responsabilidade do verdadeiro agressor pelos atos que cometer.

Independentemente das terminologias, a maneira como lidamos com o problema está diretamente ligada à solução (ou, pelo menos, à coibição de práticas hoje aceitas). A má notícia: o resultado dessa transformação só será visto em médio e longo prazo. A boa: a mudança também depende de você. A melhor: dá para começar agora. “Para que a cultura do estupro seja coibida, precisaremos ainda de muita discussão, de muitas conversas em família, entre amigos, em todos os setores da sociedade, pois o diálogo e a conscientização poderão fazer com que as pessoas compreendam mais o assunto e mudem sua postura. A mudança tem que vir do próprio indivíduo e, por mais que as leis sejam endurecidas, se as pessoas não mudarem sua própria consciência, de nada adiantará”, resume a advogada Gisele Truzzi.

Então vamos lá, para a gente ver se entendeu:

A sociedade é machista.

Talvez você também seja machista. Pensa aí.

Para mudar esse cenário, é preciso rever comportamentos.

Por exemplo. Não dá para se dizer feminista e rir quando outra mulher é chamada de vagabunda.

Também não dá para se considerar um homem de verdade se você ri quando uma mulher é chamada de vagabunda.

A violência sexual existe, principalmente contra a mulher, e é mantida em segredo.

A solução (ou diminuição) deste problema passa por sua exposição.

Exposição de todo crime sexual, não apenas dos “escolhidos”.

É preciso expor o problema, nunca a vítima.

Se a mulher se sentir agredida, tem o direito de retrucar, repreender.

Se a mulher se sentir agredida, tem também o direito de fazer um boletim de ocorrência.

Para fazer denúncias, quanto mais provas e testemunhas, melhor.

E as leis devem ser aplicadas.

Mas para as leis serem aplicadas, é preciso haver denúncias.

Viu como é preciso expor o tema?

Para denunciar, precisamos mudar a forma como lidamos com o problema.

Todos precisam entender que vítima é… vítima.

A vítima tem de se sentir segura.

A vítima precisa receber o melhor atendimento, em todas as áreas.

Não interessa o que a vítima fez antes nem depois do crime.

Quem investiga é a polícia, quem julga o caso é a Justiça. Não a vizinhança ou a sua timeline.

Pensa se toda essa transformação é simples.

Não é.

E se você cansou de falar sobre estupro, pode ficar sentado. A conversa está só começando.

Juliana Carpanez

Acesse no site de origem: Estupro: Precisa ver para crer? (UOL Tab, 06/06/2016)

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