Pena de morte como palanque: o uso eleitoral do feminicídio no Brasil
A defesa da pena de morte mascara a incapacidade do Estado de prevenir, investigar e proteger mulheres em risco. Quando o feminicídio vira conteúdo para influencer político, a sociedade perde a capacidade de enxergar as estruturas que matam. Por trás do discurso de “rigor”, há um Estado que abandona mulheres vivas e oferece punição midiática para mascarar sua própria incompetência. A retórica da execução esconde a verdadeira tragédia: o Brasil falha antes, durante e depois da violência e transforma o feminicídio em palco eleitoral.
Enquanto isso, a vida das mulheres segue invisível, descartável e politizada. O punitivismo performático rende votos, mas não salva vidas. Mulheres seguem morrendo na fila do Estado que só aparece quando já é tarde demais. A retórica punitiva cresce, mas a rede de proteção segue inexistente: o feminicídio continua sendo alimentado pela omissão estatal. Enquanto políticos performam indignação, mulheres morrem sem medidas protetivas, sem acolhimento e sem investigação eficaz. A promessa de “rigor” esconde a realidade: o Estado abandona as vítimas e transforma sua dor em espetáculo.
A vida de uma mulher não é argumento para político ganhar eleição. E muito menos cortina de fumaça para punitivista vender heroísmo enquanto deixa mulheres morrerem sem ajuda. A vida de uma mulher não é troféu para político carimbar discurso vazio. E muito menos trincheira para punitivista posar de valente enquanto abandona todas nós.
Hoje, um deputado apareceu na internet pedindo pena de morte para feminicídio. E, como sempre, o Brasil aplaudiu. E é preciso dizer com todas as letras: não é só o político que faz o teatro. É a sociedade inteira que aplaude o espetáculo. Aplaudiu como se tivesse descoberto a fórmula mágica que vai resolver a violência. Aplaudiu como quem esquece em que país vive.
Mas esquece que, num país como o Brasil, o carrasco não mira a elite. Mira o andar de baixo. Mira a periferia. Mira quem não tem sobrenome, quem não tem padrinho, quem não tem advogado, quem não tem voz. Pedir pena de morte no Brasil é pedir para matar sempre os mesmos corpos. E o Brasil aplaude.
A Constituição de 1988 foi clara: o Brasil não tem pena de morte. Não porque os constituintes eram ingênuos, mas porque sabiam muito bem o que acontece quando um Estado desigual ganha licença para matar. Sabiam quem morreria primeiro. Sabiam quem ficaria imune. Sabiam quem seria perseguido. A sociedade escolhe esquecer. Escolhe fechar os olhos para as garantias constitucionais como se elas fossem enfeite. Escolhe renunciar à própria proteção em troca de um espetáculo de indignação.
O que está em jogo não é a vida do agressor. É a sua. É a de todos nós. Porque abrir mão das garantias é abrir mão da única trincheira que existe contra o abuso de poder. A Constituição não é adereço descartável. O sistema penal não é brinquedo para satisfazer fantasias sanguinárias.
Um Estado que erra na denúncia, que erra na investigação, que erra na proteção, que erra até na medida protetiva, não pode receber carta branca para matar. É suicídio institucional. É pacto de destruição. É a sociedade cavando a própria cova.
O brasileiro médio exige punição como quem consome entretenimento. Não quer política de prevenção. Não quer rede de proteção. Não quer reformar delegacias, garantir equipes, estruturar o mínimo. Quer sangue. Quer cena. Quer barulho. Quer a ilusão de força porque não suporta encarar a própria impotência.
O Brasil não precisa de pena de morte. O Brasil precisa de Estado funcionando. O resto é teatro. E teatro, no fim, devora quem aplaude. Esse é o pacto perverso que ninguém admite: a sociedade alimenta o punitivismo e o punitivismo devolve a sociedade à própria barbárie.
Pena de morte? Para quem não consegue nem cumprir uma medida protetiva? É patético. É cruel. E aí eu me pergunto, e pergunto para você também: como um Estado que não protege mulheres vivas quer brincar de matar depois que tudo já deu errado? Antes de discutir quem vai morrer, seria bom explicar por que o Estado não consegue impedir que mulheres morram todos os dias. Mas isso ninguém quer debater. É mais fácil pedir sangue do que assumir responsabilidade.
Porque antes de falar em matar réu, vamos falar da realidade que ninguém posta no Reels. O Estado não atende. Não investiga. Não acolhe. Não afasta o agressor. Não cumpre o básico. Não tem equipe, não tem estrutura, não tem rede. O Estado só aparece quando o corpo já está no chão. E some quando a mulher ainda tem pulso.