Como o caso do goleiro Bruno escancara a tolerância social com feminicídios, por Renata Bravo

15 de outubro, 2019

Após ser condenado por assassinar Eliza Samudio, ele fez sua volta aos gramados este mês, cercado de tietagem e pedidos de selfies. Convidamos a autora do livro ‘Feminicídio: tipificação, poder e discurso’, Renata Bravo, para analisar o que significa socialmente esse retorno

(Celina/O Globo, 15/10/2019 – acesse no site de origem)

Quase uma década após ser preso pela morte de Eliza Samudio, Bruno Fernandes obteve autorização judicial e reestreou como destaque no time Poços de Caldas FC, de Minas Gerais, no último dia 5 de outubro. A situação não causaria espanto a princípio, pois seria uma forma de reinserção social de uma pessoa que está cumprindo pena e está se readequando ao retorno do convívio de forma integral com a sociedade. Todavia, esse retorno de Bruno aos gramados ocorreu com euforia por parte dos torcedores e sem nenhum protesto do lado de fora dos gramados.

Essa situação acende um alerta para pensarmos a glamourização de situações que poderiam estar revestidas de atenção e certa indignação por parte de muitas pessoas. O contexto que envolveu a morte de Eliza Samudio gerou grande repercussão na mídia e na sociedade brasileira. Eliza, com 25 anos de idade à época, após ser sequestrada e brutalmente agredida, foi assassinada e teve seu corpo jogado para ser destroçado por cachorros, razão pela qual nunca foi encontrado.

O motivo da morte, além do pedido de pensão alimentícia ao filho recém-nascido, foi o fato de Eliza relatar à imprensa que Bruno a forçou a tomar remédios abortivos e que ela sofria constantes ameaças. Situação que, segundo o goleiro, “estava atrapalhando na transação” com uma equipe de futebol no exterior com a qual ele estava em negociação, o que o incomodava e também a todos que eram de seu círculo próximo, como a família, os amigos e o empresário.

Retomar as atividades laborais é desejado para todo apenado, estando de acordo com as diretrizes do processo de ressocialização. Retomar as atividades laborais como ídolo é o cerne dessa questão.”

RENATA BRAVO
Autora de ‘Feminicídio: tipificação, poder e discurso’

Bruno foi condenado pela morte de Eliza, que não foi tratada como feminicídio, já que à época não existia essa tipificação — a Lei do Feminicídio foi criada em 2015. Embora não tenha sido rotulado com esse nome, o crime foi um feminicídio com muitas características facilmente identificáveis. Eliza foi vítima do ato mais extremo de uma continuidade de violências que sofreu, tendo sido anteriormente ameaçada e agredida fisicamente. Eliza foi morta pelo exercício de poder patriarcal praticado por Bruno e por outros homens próximos a ele, já que era vista como uma “pedra no caminho” diante da sua promessa de ascensão profissional.

Quando matou Eliza, Bruno era tido como um dos melhores goleiros do Brasil; era ídolo de um time com uma das maiores torcidas e de grande apelo popular. Retomar as atividades laborais é desejado para todo apenado, estando de acordo com as diretrizes do processo de ressocialização. Retomar as atividades laborais como ídolo é o cerne dessa questão. Um ídolo é alguém em quem as pessoas se espelham, é exemplo de sucesso em determinada carreira, alguém que o fã gostaria de ser. Então, ter um ídolo que, junto com amigos e familiares, assassinou a mãe de seu filho não pode ser aceitável diante do cenário brasileiro de números alarmantes de violência contra as mulheres e feminicídios.

Os casos de Suzane von Richthofen, Elize Matsunaga e de Bruno têm um ponto em comum: foram marcados por violência extrema. Mas a reação da população aos direitos de cada um é diferente. Em que momento essa chave é virada?”

RENATA BRAVO
Autora de ‘Feminicídio: tipificação, poder e discurso’

Com o retorno de Bruno aos gramados de forma espetacularizada, vê-se um paradoxo nos discursos da sociedade. Muitos bradam para que as pessoas que estão cumprindo pena não tenham direito às garantias processuais, a saídas temporárias, a progressões de regime — além de tantos outros pedirem expressamente por prisão perpétua e pena de morte, o que é vedado pela Constituição. Em datas como Dia das Crianças e Dia dos Pais, todos os anos surgem reportagens cobrindo a saída temporária de pessoas que tiveram seus processos amplamente divulgados, como Suzane von Richthofen e Elize Matsunaga. A saída temporária, assim como o direito ao trabalho, faz parte do processo de ressocialização de todo preso.

Os casos de Suzane von Richthofen, Elize Matsunaga e do goleiro Bruno têm um ponto em comum: todos foram marcados por violência extrema, crueldade e comoção social. Mas a reação da população aos direitos de cada um é diferente. As saídas de Richthofen e Matsunaga, por exemplo, são sempre alvo de repulsa. No caso de Bruno, a indignação dá lugar ao incentivo e compaixão por um “homem que só quer trabalhar”. Em que momento essa chave é virada?

A resposta está no fato de haver tolerância e apatia social frente aos crimes de feminicídio e das demais violências contra a mulher. Isso é demonstrado quando 82% dos entrevistados na pesquisa “Tolerância social à violência contra as mulheres” (IPEA, 2014) concordam que em briga de marido e mulher não se mete a colher; ou quando há, de um lado, uma redução de 10% nos homicídios gerais entre 2017 e 2018, enquanto no mesmo período há um aumento de 4% nos crimes de feminicídio.

Muitos dos que apoiam a idolatria de Bruno como jogador de futebol, mesmo após ter sido condenado por matar uma mulher em contexto de extrema crueldade, fazem isso em razão da cumplicidade que os homens têm uns com os outros, diante do mandato de masculinidade que rege a sociedade patriarcal.

Ainda que muitas mulheres pratiquem o esporte e compareçam aos estádios para torcerem por seus times, o futebol ainda é visto como um ambiente masculino. Isso porque, no espectro geral desse esporte, homens torcem por homens e almejam o status social daqueles jogadores. Há ainda muitos relatos de agressão entre torcedores e é cena comum presenciar xingamentos, práticas de homofobia e racismo dentro e fora de campo. É nesse ambiente que deve ser pensada a forma como os ídolos devem ser tratados e eleitos.

Portanto, não é aceitável que jogadores que representem e reproduzam as diversas formas de violência contra as mulheres sejam idolatrados. A volta glamourizada de Bruno ao futebol é o retrato da tolerância brasileira frente aos escandalosos casos de feminicídios.

Renata Bravo é especialista em trabalhos de igualdade de gênero, mestre pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV/ES) e autora do livro “Feminicídio: tipificação, poder e discurso” (Lumen Juris/2019).

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