O Brasil discute feminicídio há quase uma década desde sua tipificação penal em 2015. Nesse período, acumulamos estatísticas, pesquisas, relatórios e narrativas que expõem uma realidade brutal: morrer mulher no Brasil é, muitas vezes, morrer por ser mulher. E isso não se trata apenas de um dado criminal, mas de um espelho que reflete a profundidade da cultura machista que ainda estrutura nossas relações sociais e institucionais.
A violência de gênero não é episódica. Ela é sistêmica, cotidiana e multiforme, atingindo meninas e mulheres desde a infância até a velhice. As violações começam cedo: abusos praticados em ambiente intrafamiliar, exploração sexual, agressões naturalizadas por adultos, culpabilização precoce de meninas por comportamentos masculinos violentos. Essas vivências, muitas vezes silenciadas, moldam trajetórias de desigualdade que o Estado brasileiro ainda não consegue enfrentar de maneira suficiente.
A cultura machista no Brasil não opera apenas como um conjunto de crenças ultrapassadas sobre papéis de gênero. Ela funciona como uma tecnologia de poder, que distribui privilégios, autoriza violências e normaliza práticas discriminatórias. Está presente na linguagem, na publicidade, na escola, no ambiente de trabalho, nas relações afetivas e, não raramente, nas instituições responsáveis por proteger as vítimas.
É esse pano de fundo cultural que permite que, mesmo após sucessivas denúncias de violência doméstica, mulheres sejam revitimizadas em delegacias; que medidas protetivas sejam tratadas como “exagero”; que decisões judiciais reproduzam estereótipos; e que relatos de violência sexual ainda sejam recebidos com desconfiança, exigindo da vítima um grau de prova que não se aplica a nenhum outro tipo de crime.
Quando o Estado adota uma postura leniente ou estereotipada, ele reforça a ideia de que a violência contra a mulher é um “problema privado”, fortalecendo exatamente o que a Lei Maria da Penha buscou desconstruir.
A Lei nº 11.340/2006 permanece como o marco mais importante da proteção brasileira às mulheres. Muito além de medidas protetivas e tipificações, ela introduziu a compreensão de que a violência doméstica é relacional, psicológica, sociocultural e institucional. A lei reconhece que a mulher vítima não é um caso isolado, mas parte de um conjunto estrutural que precisa de resposta ampla, envolvendo políticas públicas, capacitação profissional, serviços especializados e abordagem multidisciplinar.
Não por acaso, a Cedaw (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher) estabelece expressamente que a violência de gênero constitui uma violação dos direitos humanos e impõe aos Estados o dever jurídico de prevenir, investigar, punir e eliminar todas as formas de violência contra mulheres e meninas.
O Brasil, embora tenha avançado em seu marco legislativo, ainda apresenta deficiências graves na implementação dessas obrigações convencionais, sobretudo em regiões onde o acesso à Justiça é limitado e a proteção estatal permanece fragmentada.
Feminicídio: o ponto extremo de uma escalada anunciada
O feminicídio é a face mais letal da violência de gênero. Sua tipificação não surgiu para “agravar penas”, mas para dar visibilidade jurídica e política a mortes que sempre ocorreram, mas eram classificadas como homicídios comuns. O reconhecimento da motivação de gênero, seja por violência doméstica, seja por menosprezo ou discriminação, obriga o sistema de justiça a olhar para o contexto, e não apenas para o ato final.
Toda mulher assassinada havia, anteriormente, atravessado um ambiente de risco: controle, ciúme, posse, ameaças, isolamento, agressões psicológicas e físicas. O feminicídio é precedido por ciclos, e não por impulsos. Por isso, tratá-lo apenas como problema penal é insuficiente. É necessário compreender que o direito penal chega tarde: chega quando a vida já foi interrompida e o Estado apenas registra o fracasso de sua própria omissão.
A situação de meninas impõe desafios ainda maiores. A violência sexual intrafamiliar é massiva e silenciosa; a exploração sexual na adolescência é tratada com naturalidade em muitas regiões, e a responsabilização das vítimas ainda é recorrente. Meninas têm ainda menos acesso à rede de proteção, dependem dos próprios agressores e sofrem barreiras culturais mais rígidas.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, com seu princípio da proteção integral, deveria ser a base de atuação em todos esses casos. Porém, na prática, há subnotificação, falta de mecanismos de escuta protegida, dificuldades de articulação entre escolas, serviços de saúde, conselhos tutelares e Ministério Público.
A violência contra meninas é o primeiro capítulo de um ciclo que, quando não interrompido, evolui para a violência contra mulheres adultas.
Violência vicária: uso de crianças como arma de sofrimento
Nesse mesmo contexto, ganha especial relevância a violência vicária, recentemente reconhecida de forma expressa pela Resolução Conjunta Conanda/CNDM nº 1, de 18 de setembro de 2025, como uma grave violação de direitos humanos de crianças, adolescentes e mulheres-mães. Trata-se da prática na qual filhos são instrumentalizados como meio de punir, controlar ou causar sofrimento psicológico às mulheres, perpetuando e atualizando a violência de gênero por meio da manipulação de vínculos parentais, como definido no artigo 2º da referida resolução.
Ao reconhecer que crianças e adolescentes são utilizados como instrumentos de retaliação em contextos de violência doméstica, o Estado brasileiro reforça que a violência vicária não atinge apenas a mulher, mas produz impactos profundos, intergeracionais e duradouros no desenvolvimento emocional das vítimas infantis, exigindo resposta prioritária e integrada do Sistema de Garantia de Direitos.
A manifestação mais conhecida ocorre quando o agressor ameaça ou efetivamente agride os filhos para enfraquecer a mulher, impedir separações ou punir decisões consideradas desobedientes. O fenômeno também se expressa por meio da alienação de vínculos, retenção indevida de documentos, desaparecimento de crianças ou manipulação das rotinas escolares e de saúde, sempre com o propósito de submeter a mulher ao terror emocional.
Ao utilizar filhos como instrumentos de dor, o agressor não apenas perpetua a violência contra a mulher, mas produz traumas profundos e de longa duração em crianças. O Estado brasileiro, portanto, precisa incorporar essa categoria de violência às políticas públicas de proteção, garantindo protocolos específicos de acolhimento, escuta especializada e avaliação de risco quando houver crianças inseridas no contexto de violência doméstica. Ignorar a violência vicária é perpetuar um ciclo de dor que se transmite entre gerações.