Uma criança fica órfã em razão do feminicídio a cada quatro dias no Rio Grande do Sul. No restante do Brasil a situação não é muito diferente.
Em muitos casos, a morte da mãe é acompanhada do suicídio do feminicida ou de sua prisão, fazendo com que crianças e adolescentes sejam privados da presença do pai e da mãe na mesma ocasião.
O feminicídio é uma morte anunciada e evitável. O que significa que a dor e as tragédias das crianças e adolescentes diretamente atingidos também.
Maitê Proença, há alguns anos, quebrou o silêncio de décadas e falou sobre o seu drama familiar. Ela tinha 12 anos quando o pai matou sua mãe com 16 facadas. Seu desabafo serve de alerta:
“Quando acontece uma coisa, não é só a mãe que sofre, as outras vítimas também sofrem. A violência atinge a todos. Eu tinha dois irmãos, um se matou de tanto beber e o outro entrou para as drogas pesadas. Meu pai acabou se matando também. Então, quem sobrevive a isso, como no meu caso, passa a vida perguntando se tem valor. Por que eu não consegui impedir? Ninguém pensou na gente, naquela estrutura alegre, nada daquilo foi levado em conta.”
Estudos demonstram os danos advindos do fato de a criança ou o adolescente conviver em lares violentos. Sensível a essas questões, a Lei 13.431/17, classifica como violência psicológica “qualquer conduta que exponha a criança ou o adolescente, direta ou indiretamente, a crime violento contra membro de sua família ou de sua rede de apoio, independentemente do ambiente em que cometido, particularmente quando isto a torna testemunha” (artigo 4º, II, “c”). A violência contra a mãe, portanto, é uma forma de violência psicológica contra a criança.
Já no ano de 2017, a Unicef, no estudo “Um Rosto Familiar: a violência na vida de crianças e adolescentes”, alertava que uma em cada quatro crianças menores de cinco anos, no mundo, ou seja, cerca 177 milhões, vivia com uma mãe vítima de violência doméstica.
Os impactos de se viver em um lar violento também são sentidos na perpetuação do fenômeno da violência, levando a que, por meio de processos psíquicos interiorizados, ela seja reproduzida pela vítima em outro momento de sua vida. É disso que trata a violência transgeracional.
Pesquisas feitas com agressores mostram um histórico de vida muito comum entre eles: “um percentual elevado dos futuros agressores foram anteriormente ou tem sido testemunhas destas condutas violentas que foram aprendidas durante os períodos de desenvolvimento e maturação do indivíduo.”
Daí o caráter transgeracional desse tipo de violência, que atinge homens e mulheres, embora por conta de fenômenos psíquicos diversos. Para os homens o que prevalece é a apreensão do comportamento agressivo; para as mulheres, o que elas aprendem diz com a submissão, com a obediência, com o conformar-se com o seu “destino”.
Os prejuízos para os filhos ocorrem em todos os níveis: social, psicológico, emocional e comportamental, “afetando de forma altamente negativa seu bem-estar e seu desenvolvimento, com sequelas a longo prazo que, inclusive, pode chegar a transmitir-se por meio de sucessivas gerações.”
Compromete, portanto, o desenvolvimento futuro dos indivíduos imersos nesse ambiente conflitivo e violento. E comprometendo-os, compromete toda a futura sociedade. O pai e a mãe são importantes figuras de apego e referência para a vida dos filhos e para os comportamentos que terão quando da fase adulta.
Algumas teorias buscam explicar os efeitos da violência familiar aos filhos menores de idade:
– Teoria da aprendizagem social: “a exposição dos filhos à violência de gênero provoca a internalização e aprendizagem de modelos violentos e papeis de gênero errôneos.”
– Teoria do desamparo aprendido: “a incapacidade para prevenir o momento, o lugar, a intensidade em que se vai produzir a violência, ou seja, a falta de controle da mesma, provocaria estados de desamparo tanto nas vítimas diretas como nas indiretas. […] O desamparo [por sua vez] seria a causa pela qual muitas mulheres maltratadas não reagem ante a violência, mantendo uma convivência nociva para elas e para seus filhos. Tudo isso com independência de sua formação, êxito profissional e situação econômica.”