Quando o alvo são as mulheres

13 de janeiro, 2019

O aumento do número de mulheres mortas por familiares coloca em xeque a defesa da flexibilização do porte de armas

(Época, 13/01/2019 – acesse no site de origem)

Aos 40 anos, Simone Fernandes dos Santos de Morais vivia uma vida simples. Morava com o marido e o filho de 19 anos na zona rural de Santa Isabel, a 65 quilômetros de São Paulo. Cuidava da casa e começara a ajudar no dia a dia de um pequeno sítio que havia sido cedido ao marido para ele plantar e, assim, aumentar a renda da família. Simone engravidou, mas logo perdeu o bebê. Chegou a ser internada, mas no fim ficou aliviada. Não seria fácil, àquela altura da vida, criar uma criança. Além disso, havia pelo menos oito anos o marido, João Cândido de Morais, de 43 anos, fazia uso de remédio controlado e vivia de uma aposentadoria precoce após um diagnóstico de transtornos psiquiátricos. Cabia a ela controlar o orçamento da casa, fazer as compras e cuidar de João Cândido, sobretudo para que ele não se esquecesse de tomar o medicamento.

Mas a vida não era difícil só por isso. Nos últimos tempos, a convivência com João Cândido se tornara cada vez mais dura. Na semana do Natal, Simone recebeu a visita do cunhado, Alcídio, um acontecimento raro — os surtos do marido haviam afugentado os parentes. E foi com ele que desabafou. Já não aguentava mais as constantes brigas e queixas do marido por causa dos gastos com a casa, com o filho, e estava decidida a pedir o divórcio.

Alcídio conversou com o irmão, mas ouviu dele algo pior: João Cândido alimentava a suspeita de que o bebê que Simone perdera não era dele e que a mulher o havia traído. Procurou acalmá-lo, disse que ele estava pensando bobagem e que deveria, com a mulher, voltar a frequentar a igreja evangélica, da qual o casal havia se distanciado.

Os dois irmãos só voltaram a se encontrar no último dia 4 de janeiro. Ao chegar em casa no fim da tarde, Alcídio deparou com João Cândido sentado na varanda, muito agitado. Disse que um homem havia invadido a casa dele e atirado, matando Simone. Mas a história não convenceu. Enquanto ganhava tempo acalmando João Cândido, Alcídio ligou para a polícia.

Poucas horas antes, por volta da uma e meia da tarde, Simone fora morta com dois tiros na altura do tórax. O filho não estava em casa. Ninguém sabia dizer o que acontecera. Vizinhos apenas ouviram tiros e chamaram a polícia. Com a mulher caída no quarto, ao lado da cama, João Cândido saiu de casa. Numa estrada de terra, pegou carona com um vizinho para ir até o centro da cidade. Nervoso, dizia que sua casa fora invadida. De início, o vizinho não deu muita importância à história, mas, ao voltar para casa e saber da morte de Simone, desconfiou. Foi olhar o próprio carro. João Cândido, que havia sentado no banco de trás, deixara debaixo do banco do motorista a arma do crime — um revólver calibre 38.

João Cândido foi preso em flagrante por feminicídio. E Simone passou a fazer parte da triste e crescente lista das mulheres vítimas de violência doméstica. “Quem pode ter vendido uma arma a um homem que tomava medicamento controlado? Se a arma era legal ou ilegal, pouco importa. Isso precisa ser investigado”, desabafou Alcídio, o irmão do assassino. Para a polícia, esse é um detalhe pouco relevante num crime já elucidado. João Paulo, o filho do casal, contou ao delegado que o pai tinha duas armas escondidas em casa — um revólver calibre 38 e outro calibre 22 — e que vivia brigando com sua mãe por uma suposta disputa de terras a que ela teria direito no inventário de seu avô.

João Cândido era um homem sem antecedentes criminais. Nem mesmo Simone havia registrado na polícia qualquer queixa contra ele por agressão. “Ela tinha medo. Nunca se queixou. E ainda tinha a doença dele”, lamentou a mãe de Simone, Juventina Fernandes, de 70 anos.

A morte de Simone alerta sobre uma hipótese alarmante para o país: a possível relação entre posse de arma e o aumento das vítimas de violência doméstica. Em 2016, último dado disponível no sistema Datasus, que registra mortes ocorridas em atendimentos no sistema público de saúde, 2.339 mulheres foram mortas por disparos de armas de fogo no Brasil — metade do número de mortes por agressão ocorridas no país. O dado inclui, além de homicídios, registros de roubos seguido de morte — latrocínio — e lesão corporal seguida de morte. Nos casos em que a mulher foi morta dentro de casa, armas de fogo foram usadas em 40% dos casos.

Um levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz, ONG de referência na promoção de iniciativas contra a violência, mostra que em alguns estados o percentual de mulheres mortas por arma de fogo dentro de suas residências é ainda maior: 58% dos casos na Paraíba, 67% no Acre, 68% no Rio Grande do Norte e 70% em Alagoas.

Especialistas em violência contra a mulher receiam que o decreto prometido pelo presidente Jair Bolsonaro para os próximos dias, que flexibiliza a posse de arma e foi uma das principais promessas da campanha eleitoral, agrave a situação das brasileiras. “Não ter arma de fogo não reduz o risco de violência doméstica. Mas a existência dela dentro de casa, seja a arma legal ou ilegal, agrava o risco de morte para as mulheres e acende a luz vermelha. É um consenso internacional”, disse a promotora Valéria Scarance, do Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público de São Paulo. “A existência de arma de fogo dentro de casa é um fator maior de risco. Afinal, em geral os homens que praticam violência contra a mulher e feminicídio são réus primários, têm bons antecedentes e residência fixa ( condições que os credenciam a comprar armas )”, acrescentou a promotora.

Segundo Scarance, a posse de arma pelo companheiro é um dos elementos que levam autoridades de vários países a determinar medidas protetivas para mulheres, por ser considerado um agravante. Scarance chamou a atenção ainda para outro dado, também alarmante: entre 2011 e 2016, disparos de arma de arma de fogo foram a principal causa da morte de mulheres de até 29 anos de idade.

Dados estatísticos não deixam dúvida de que se trata de um fenômeno preocupante e em ascendência. Em dez anos, entre 2006 e 2016, o homicídio de mulheres aumentou 15%. Segundo dados dos Anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2017 ocorreram 4.539 homicídios dolosos com vítimas femininas, um aumento de 6,9% em relação a 2016. Desse total, 1.133 foram registrados como feminicídios — alta de 22% em relação ao ano anterior. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que as medidas protetivas expedidas no Brasil com base na Lei Maria da Penha, vigente desde 2006 e que prevê punições mais graves e maior proteção às vítimas de violência doméstica, somaram 236.641 em 2017 — um aumento de 21% em relação a 2016. Os processos de violência doméstica contra a mulher iniciados no Brasil chegaram a 452.988, 12% a mais do que em 2016.

Stephanie Morin, gerente da área de Gestão do Conhecimento do Instituto Sou da Paz, afirmou que dar posse de armas às mulheres não vai fazer com que se sintam mais seguras, já que as armas têm de ser guardadas em locais de difícil acesso — inclusive para evitar o risco de serem pegas por crianças — e é bem difícil imaginar que, numa situação de briga corporal, uma mulher consiga se desvencilhar do agressor, pegar a arma e se defender. “Isso é uma falácia. A maior presença de armas traz desfecho trágico para brigas fúteis. Em ambientes conflituosos, de violência doméstica, o problema tende a se agravar. Provavelmente, as mulheres passarão a ser ainda mais ameaçadas. E quem vai usar é o opressor, não a vítima”, disse Morin. “A arma cria situações perigosas não só para os envolvidos, mas também para as pessoas que estão próximas”, completou.

Cleide Carvalho

Poucas horas antes, por volta da uma e meia da tarde, Simone fora morta com dois tiros na altura do tórax. O filho não estava em casa. Ninguém sabia dizer o que acontecera. Vizinhos apenas ouviram tiros e chamaram a polícia. Com a mulher caída no quarto, ao lado da cama, João Cândido saiu de casa. Numa estrada de terra, pegou carona com um vizinho para ir até o centro da cidade. Nervoso, dizia que sua casa fora invadida. De início, o vizinho não deu muita importância à história, mas, ao voltar para casa e saber da morte de Simone, desconfiou. Foi olhar o próprio carro. João Cândido, que havia sentado no banco de trás, deixara debaixo do banco do motorista a arma do crime — um revólver calibre 38.

João Cândido foi preso em flagrante por feminicídio. E Simone passou a fazer parte da triste e crescente lista das mulheres vítimas de violência doméstica. “Quem pode ter vendido uma arma a um homem que tomava medicamento controlado? Se a arma era legal ou ilegal, pouco importa. Isso precisa ser investigado”, desabafou Alcídio, o irmão do assassino. Para a polícia, esse é um detalhe pouco relevante num crime já elucidado. João Paulo, o filho do casal, contou ao delegado que o pai tinha duas armas escondidas em casa — um revólver calibre 38 e outro calibre 22 — e que vivia brigando com sua mãe por uma suposta disputa de terras a que ela teria direito no inventário de seu avô.

 

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