(Luciana Araújo/Agência Patrícia Galvão, 28/11/2014) A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) publicou no início deste mês o Informe Anual 2013-2014: O Enfrentamento à violência contra as mulheres na América Latina e Caribe. O documento aponta “grandes avanços” nos tipos jurídicos aplicáveis ao enfrentamento à violência contra as mulheres, impulsionados pela ampla ratificação da Convenção para Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw) e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará).“Uma mudança de paradigma jurídico, legislativo e cultural, que rompe a fronteira entre o público e o privado e alça definitivamente a questão da violência doméstica contra as mulheres à esfera pública”, afirma.
No entanto, o relatório ressalta que permanecem como desafios o reconhecimento das distintas formas de violência contra a mulher e a sistematização de informações internamente aos países e na região como um todo.A falta de homogeneidade na apuração e consolidação dos dados é apontada como um entrave que dificulta a comparação e estabelecimento da real dimensão do problema no plano interno dos países e em nível internacional. Trata-se de um problema que a Comissão de Estatísticas da ONU vem buscando solucionar, tendo inclusive aprovado, em 2013, diretrizes para a formulação de estatísticas sobre a violência contra as mulheres. O Brasil integra esta Comissão.
Outro desafio listado no Informe é que os países coloquem em prática uma atuação articulada das instituições para assegurar o desenvolvimento de políticas integrais de atendimento às mulheres vítimas da violência e fazer avançar o alcance destas para além das grandes concentrações urbanas. Da mesma forma, é reafirmado o diagnóstico já apontado por organizações feministas de que ainda são insuficientes as políticas de prevenção, aí inserido um projeto educacional que contribua para a igualdade de gênero, assim como de reparação às vítimas.
Já na apresentação do trabalho, a secretária Executiva da Cepal e supervisora do relatório, Alicia Bárcena, aponta ainda que os dados mostram que “como em outros campos do desenvolvimento das políticas de igualdade de gênero, mantém-se a dicotomia entre as mulheres e as famílias como sujeitos de direito, o que leva à persistência de políticas ainda muito focadas no combate à violência doméstica e intrafamiliar, em detrimento de ações de enfrentamento à violência contra as mulheres em suas outras formas de manifestação e espaços de produção e reprodução”.
Apenas 10 dos 33 países da região têm leis consideradas integrais de enfrentamento à violência contra a mulher (Argentina, Bolívia, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, República Dominicana, México, Nicarágua e Venezuela).
A situação brasileira
Mercado de trabalho – O Informe aponta que, apesar de a lacuna de gênero em termos de participação no mercado de trabalho ser uma das menores na região, no Brasil a desigualdade nas taxas de desemprego entre homens e mulheres, em prejuízo destas, é a maior.
Também o número de horas destinadas ao trabalho não remunerado é maior entre as mulheres ocupadas em relação aos homens, o que, somado ao trabalho remunerado, impõe às mulheres uma sobrecarga. De acordo com o relatório, em 2011 o tempo destinado ao trabalho remunerado no Brasil era de 42 horas semanais para os homens e 34 para as mulheres, enquanto elas dedicavam 20 horas semanais às atividades não remuneradas e eles, apenas 5 horas ao longo da semana.
Participação política – No âmbito da política e dos espaços de poder, o documento destaca que a presença de mulheres nas esferas legislativas da região aumentou de 19% para 26%. No Brasil, considerando o Legislativo federal eleito em 2014, as mulheres são 9,94% da Câmara dos Deputados e serão 15,6% do Senado, caso permaneçam no exercício do mandato as cinco eleitas neste pleito e as oito cujos cargos seguem em vigor até 2018.
Direitos sexuais e reprodutivos – Entre 2000 e 2010,caiu de 14,8% para 11,8% o índice de gravidezes de mulheres entre 15 e 19 anos no país – colocando o Brasil no segundo lugar regional em relação à redução da maternidade na adolescência, atrás apenas do Uruguai. O Informe destaca que o indicador gravidez e maternidade na adolescência, além de expressar “profundas desigualdades sociais, culturais, de gênero e raça/etnia presentes na região”, é um obstáculo à incorporação de mulheres jovens no mercado de trabalho e “expõe as meninas e jovens a um risco maior de violência física ou sexual por parte dos parceiros. Como indicam as taxas de prevalência duas a três vezes maiores entre as mulheres que tiveram o primeiro filho antes dos 17 anos em comparação com as que foram mães depois dos 25 anos, segundo dados da Opas[Organização Pan-Americana de Saúde] divulgados este ano”.
Segundo o relatório, quando da realização de pesquisas no país (assim como na Jamaica e no Peru), foi apresentada às mulheres a opção de responder se sua primeira relação sexual foi “desejada” (ao invés de perguntar se foi “forçada”). Como resultado constatou-se uma quantidade significativa de respostas negativas, o que evidencia a pressão a que muitas mulheres jovens são submetidas para que pratiquem sexo, a necessidade de desenvolver mecanismos de pesquisas mais qualificados para medir tal situação e a importância da educação sexual de adolescentes e jovens, homens e mulheres.
Como na maior parte da região, também seguem pendentes no Brasil mudanças na legislação que garantam o respeito à autonomia da mulher e a criação e melhoria das condições de acesso a serviços de interrupção voluntária da gravidez, “a despeito do compromisso assumido pelos Estados no Consenso de Brasília (2010) de ‘revisar as leis que preveem medidas punitivas às mulheres que tenham se submetido a abortos (…) e garantir a realização do aborto em condições seguras nos casos autorizados em lei’”.
Enfrentamento à violência – O documento destaca a experiência brasileira da Lei Maria da Penha, “ponto central da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres” e o Programa Mulher, Viver sem Violência, que busca efetivar a Lei articulando ações entre a União, Estados, o Distrito Federal e os municípios, bem como o Poder Judiciário, Ministério Público, Segurança Pública e as redes de Saúde, Educação, Assistência Social, Trabalho e Habitação. Também são citadas como elementos chave do Programa a ampliação daCentral de Atendimento à Mulher – Ligue 180; as campanhas contínuas de conscientização previstas no Programa; e a Casa da Mulher Brasileira e os Centros de Atenção à Mulher nas regiões de fronteira seca.
Além da iniciativa da Advocacia Geral da União, de propor ações regressivas que imponham aos agressores a indenização ao Estado pelos gastos derivados da violência doméstica, também é destacada a criação, em 2011, do Disque 100, para denunciar abuso sexual contra crianças e adolescentes, além de casos de violações a direitos humanos da população adulta, especialmente negros e LGBTs.
Também é destacada no Informe a importância de as pesquisas de demografia e saúde incorporarem questões sobre a violência contra mulheres para favorecer a identificação dos problemas centrais que devem ser enfrentados por quaisquer políticas públicas que se proponham a instituir medidas efetivas e eficazes para a prevenção, punição e erradicação da violência física e sexual, em particular nas relações afetivas. No Brasil, o último levantamento oficial que incluiu esse dado constante do Informe da Cepal data de 1996, a Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde do IBGE.
A Estratégia Nacional de Fronteiras, sob responsabilidade de Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, também é mencionada entre as experiência mantidas em 15 países da região que contam com legislação específica para combater o tráfico de pessoas.
O Brasil é citado ainda como uma das exceções, ao lado do México e da Colômbia, onde o montante orçamentário destinado à prevenção e enfrentamento à violência contra a mulher é especificado no orçamento geral.
O relatório
O Informe analisa, a partir das distintas respostas governamentais, os avanços obtidos ao longo dos últimos 20 anos no enfrentamento às violações dos direitos das mulheres na América Latina e Caribe e a atual situação das mulheres nos países da região; os fatores que perpetuam as desigualdades de gênero no tocante à autonomia física, econômica e à participação política, e como essas diferenças sociais de inserção estão relacionadas à violência sofrida pelas mulheres; o marco normativo e as formas de violência sexista reconhecidas no âmbito do Direito internacional; e os reflexos das políticas públicas desenvolvidas para conscientização da população e dos agentes dos Estados. Também se busca analisar se houve avanço na qualidade dos serviços públicos oferecidos e na vida das mulheres vítimas da violência que contribuam para a autonomia feminina e a construção de sociedades “mais justas, igualitárias e democráticas”.
E foram analisadas, em particular, as iniciativas assumidas pelos judiciários e demais órgãos do Sistema de Justiça dos 33 países, como os ministérios públicos e defensorias.
O documento aponta ainda como o enfrentamento a essas violações vem ganhando força na agenda de trabalho dos organismos internacionais de forma transversal. E destaca a importância da incorporação da perspectiva de gênero em todas as políticas públicas adotadas pelos Estados, ao afirmar que “os avanços no enfrentamento à violência contra as mulheres no âmbito internacional se confrontam reiteradamente com as desigualdades verificadas entre os direitos legalmente consagrados e seu exercício efetivo”. Nesse sentido é ressaltada a contribuição do Modelo de Protocolo Latino-Americano de Investigação de Mortes Violentas de Mulheres por Razões de Gênero, formulado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e pela ONU Mulheres – que está sendo adaptado à realidade brasileira com o objetivo de qualificar a ação do Estado na apuração e punição de casos de feminicídio.
O Informe é produzido regularmente pelo Observatório da Igualdade de Gênero na América Latina e Caribe da Cepal, constituído pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), a ONU Mulheres, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), a Secretaria Geral da Conferência Ibero-Americana (Segib) e a Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (Aecid).