Em artigo exclusivo, ex-deputado federal argumenta que criminalização não reduz homofobia e que é mais eficaz promover respeito e garantir igualdade de direitos
(O Globo, 20/02/2019 – acesse no site de origem)
A gente precisa separar a discussão jurídica da política. A defesa da criminalização da homofobia realizada na audiência do Supremo por Paulo Iotti — um dos melhores advogados de direitos humanos desse país — foi brilhante. E eu acho que, do ponto de vista jurídico, ele está coberto de razão: existe uma omissão do Legislativo em relação a um mandato constitucional, já que não é possível dar à homofobia um tratamento legal diferente do que é dado ao racismo da cor da pele — que é criminalizado, assim como o antissemitismo. Contudo, isso é o aspecto jurídico. Do ponto de vista da política pública, eu não acredito nesse tipo de solução, nem para o racismo, nem para a homofobia.
Ao longo dos meus oito anos de mandato no Congresso Nacional, eu defendi que a superação da homofobia e de outras formas de preconceito — que são produto de um problema social, educacional, cultural e político — não virá do direito penal. As promessas de resolver tudo com mais penas, mais presídios, mais armas e mais repressão podem levar tranquilidade a algumas pessoas, mas nunca produzem efeitos na vida real.
Agora, bem, em primeiro lugar, precisamos entender que criminalização é essa. Por um lado, existem crimes já previstos no Código Penal: assassinato, estupro, lesões, ameaças, etc. Tudo isso já está na lei e dá muitos anos de cadeia (o que, nesses casos, está certo, já que são crimes violentos para os quais não temos outra punição melhor). O problema é que quase ninguém é condenado na prática, porque, também pela LGBT-fobia, esses crimes geralmente não são bem investigados.
A criação de um tipo penal novo não vai reduzir o número de crimes de ódio contra LGBTs, que é alarmante: são mais de 300 assassinatos por ano no Brasil, que geralmente ficam impunes.
Eu seria a favor de reconhecer expressamente na lei a “motivação torpe” quando esses crimes forem cometidos por LGBT-fobia. Quando alguém mata outro pelo fato de ser homossexual, bissexual ou trans, teria a pena agravada de alguma forma, não necessariamente mais tempo de prisão. Pode ser uma pena acessória, socioeducativa, que cumpra enquanto está preso e vise fazer com que reflita sobre seus preconceitos. Porém, ainda temos o problema da aplicação da lei pelas forças de segurança e o Judiciário: se não combatermos a LGBT-fobia institucional, esses crimes continuarão impunes.
Por outro lado, temos outras ações homofóbicas não-violentas, que não produzem, hoje, efeitos penais. Por exemplo, se alguém me chama de “cu ambulante” por ser gay, como Bolsonaro fez comigo, ou se alguém demitir uma funcionária ao ficar sabendo que ela é lésbica. Deveríamos regulamentar melhor as ações cíveis, trabalhistas, etc., mas a pergunta é se quem faz aquilo deveria ser preso. Eu não acredito que seja a melhor solução.
Seria muito mais eficaz, como foi feito em outros países, garantir a plena igualdade de direitos à população LGBT, educar contra o preconceito nas escolas e que o Estado tenha políticas públicas em todos os níveis para combater a LGBT-fobia e promover o respeito e a celebração da diversidade. Quer dizer, mudar a cultura em que essa violência homofóbica prolifera. Sobre tudo isso, eu apresentei projetos de lei no parlamento. Acredito também que outras coisas podem ser feitas por outros setores da sociedade, não é só o Estado. Os veículos de comunicação, por exemplo, deveriam explicar que não existe nenhuma “ideologia de gênero” e que nunca existiu nenhum “kit gay”, em vez de reproduzir essas asneiras. O discurso de ódio, sobretudo na política, deveria ser repudiado por todos.
A visibilidade positiva também ajuda: o beijo gay e a história de um menino trans em novelas da Globo foram mais úteis para combater o preconceito que uma lei penal. Quando pessoas famosas e bem-sucedidas saem do armário, isso também ajuda. Se um dia algum presidente brasileiro fosse na parada LGBT, como o primeiro-ministro do Canadá faz, seria ótimo. Há muitas outras coisas que podem ser feitas por diversos setores, que ajudariam a mudar de verdade a situação, reduzir o preconceito, melhorar a vida das pessoas LGBT desde a infância e a adolescência até a velhice, reduzir a violência, construir uma sociedade mais amigável para todos e todas.
A lei penal não serve para isso. Quando é aplicada, acaba sempre punindo os mais pobres e os que não tem poder. Mesmo que a criminalização da homofobia for aprovada, Bolsonaro, Malafaia e Marco Feliciano, por citar três homofóbicos de carteirinha que fazem muito, dia e noite, para aumentar o preconceito e a violência contra LGBTs na sociedade, não vão ser presos, até porque todos eles já poderiam ter sido presos por outros crimes e não foram. Quem vai ser preso? Talvez um rapaz negro e pobre que chamou outro, branco e de classe média, de veado.
E, mesmo se não fosse assim, se a gente fosse colocar alguma punição contra a homofobia na lei, eu preferia penas socioeducativas, que permitam combater de fato os preconceitos em vez de trancafiar mais pessoas nos presídios, o que só faz delas pessoas piores e com mais raiva.
Contudo, como eu disse, se aplicássemos a lei do racismo aos casos de homofobia, a homofobia seria de fato criminalizada. E aí o Paulo Iotti tem razão: não dá para tratar de forma diferente, porque, de fato, a homofobia é uma forma de racismo. A tese jurídica que o PPS e a ABGLT levaram ao Supremo é correta, mas eu acho que deveríamos mudar o foco e a resposta global que damos a todas as formas de preconceito, em vez de acreditar que a criminalização vai resolver esses problemas.
* Jean Wyllys é ex-deputado federal