A promotora de Justiça Cláudia Ferreira Mac Dowell estranhou quando o advogado Celso Vendramini começou a citar o movimento LGBT durante um júri que analisava se dois policiais militares eram culpados pela execução de dois homens que roubaram um carro.
(Universa, 13/11/2019 – acesse no site de origem)
“Ele disse, do nada: ‘Bom mesmo é o Putin [Vladimir, presidente da Rússia], que acabou com a passeata gay. Não gosto da democracia americana, cada um fala o que quer. Na Rússia não, lá não tem isso’. Ele estava, evidentemente, me chamando para a briga”, diz Cláudia a Universa.
Lésbica e casada, a promotora já participou de diversos eventos do Ministério Público de São Paulo ligados à diversidade sexual. Em suas redes sociais, diz, é possível ver que é homossexual. “Mas em 27 anos de trabalho, nunca vi acontecer nada parecido, nem em plenário de júri, nem em audiência ou qualquer outro ato”, diz. “Essas ofensas se agravaram bastante neste ano. Ele [o advogado] mesmo fez a vinculação com o presidente [Jair Bolsonaro], quando começou a fazer elogios a ele, dizendo que ‘o atual presidente da República é muito bom, está acabando com a corrupção e é a favor da família'”, complementa Claudia.
O júri em questão foi realizado nos dias 6 e 7 de novembro. Vendramini defendia os dois policiais militares da acusação, enquanto Cláudia, promotora, sustentava que os réus haviam excedido a legítima defesa e que plantaram armas na cena após os assassinatos. O advogado é ex-PM da Rota, a tropa de elite da PM paulista, e tem histórico de defesa de policiais em processos.
“Não tinha nada a ver com o caso falar de movimento LGBT. Ele jogou uma casca de banana para eu escorregar. E eu disse que ia me ater ao processo, que falaria das provas. Mas, no final, em sua última fala, ele baixou ainda mais o nível: em um tom extremamente belicoso. Disse, não lembro exatamente a ordem: ‘Quer ser homossexual, não sou contra, mas seja entre quatro paredes porque o problema são as crianças verem. O movimento LGBT vai para a avenida Paulista e fica enfiando crucifixo no ânus e na vagina. O movimento LGBT odeia a polícia militar'”, relata a promotora.
Os réus foram absolvidos, e a promotora pediu a palavra enquanto a juíza redigia a sentença de absolvição. “Me dirigi ironicamente a ele, agradecendo por ter externado de maneira tão clara um pensamento obscurantista e medieval. Disse que ele mostrava a obrigação que eu, como promotora de Justiça, homossexual, tenho de vir publicamente exigir respeito”, diz Cláudia. “Eu, que estou em posição de privilégio, passei por isso: imagine o que homossexuais passam diária e anonimamente?”
Após sua colocação, a promotora relata que o advogado disse estar “surpreso”, afirmando que não fazia a menor ideia que ela era homossexual. “Falou também que não era contra ‘homossexualismo’, que só é preciso preservar as crianças? Aquele velho discurso de querer associar movimento LGBT à pedofilia.”
Represálias e ação por danos morais
O Ministério Público do Estado de São Paulo divulgou uma nota de desagravo afirmando que a entidade manifesta irrestrito apoio à promotora Cláudia Ferreira Mac Dowell, que “merece aplausos da nossa instituição e de toda a sociedade por sua atuação no Tribunal do Júri. Neste ambiente, os debates são firmes, mas evidentemente não devem ultrapassar os limites da urbanidade”.
“O MPSP solidariza-se com a promotora e expressa seu veemente repúdio contra discursos de natureza homofóbica, posto que eles indicam desrespeito à pessoa humana e não guardam a mais remota conexão com o objetivo do Júri: a realização da Justiça”, afirma a instituição.
A APMP (Associação Paulista do Ministério Público) divulgou uma nota de repúdio similar. “É inaceitável que uma agente do sistema de Justiça, no cumprimento constitucional de suas funções, sofra qualquer tipo de ofensa. Muito pior quando se configura discriminação relacionada à sua orientação sexual. É urgente que tais comportamentos discriminatórios sejam combatidos e punidos com rigor exemplar na sociedade brasileira, para preservação e valorização do estado democrático de direito”, diz a entidade.
O Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público também se manifestou apoiando à promotora e repudiando “as manifestações homofóbicas proferidas por advogado em plenário de júri, durante sessão de julgamento ocorrida na Comarca de São Paulo”. “Inaceitável, na sociedade atual, qualquer ataque relacionado à orientação sexual e/ou identidade de gênero, usualmente embasado em preconceitos e estigmas. Ainda pior se a violação do direito se faz em ambiente judicial, realizada por advogado, como na presente situação”, diz, em nota.
Integrante do movimento, a promotora de Justiça Fabíola Sucasas, do MP-SP, afirma que o advogado foi LGBTfóbico e deve ser gravemente punido. “Esse tipo de postura não pode ser mais aceita, é um caso muito emblemático por todos os seus contornos. Não podemos deixar esse tipo de manobra crescer”, diz. Considera, ainda, a situação “lamentável”. “Por todo o seu contexto, pela baixeza, pela manipulação mental e intelectual, pela violação sem tamanho aos direitos humanos”, afirma. “Há um grande problema nesse ‘palco’, que é o mito do vale-tudo, o de que se fala o que se quer. Ele ainda coloca a colega como louca, mais uma vez usando de inferiorização e apequenamento da sua posição. A clássica manobra de culpar a vítima.”
Segundo Cláudia, providências já estão sendo adotadas no Ministério Público. “Em tese aconteceu um crime de homofobia, isso terá que passar por um promotor ou promotora de justiça, que será chamado a se manifestar sobre o caso”, explica. Também a APMP moverá ação por danos morais, de acordo com a promotora. “Quero despersonalizar o caso. Sou a principal testemunha, mas a ofensa não veio em nome próprio. Mais do que a mim, ele queria diminuir toda a causa LGBT. Quando falou para mim, falou para cada homossexual e demonstrou o asco que ele tem por essas pessoas.
Está marcado para o dia 16 de dezembro um ato de desagravo, evento solene e simbólico para manifestar repúdio à atitude do advogado. A Comissão de Diversidade Sexual da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo) estará presente. “Vivemos em um país em que lésbicas são estupradas, gays apanham em ônibus e promotora de Justiça é atacada no exercício de sua profissão. Não é vitimismo, é a realidade que nossa população vive”, afirma Luanda Pires, coordenadora da comissão e ativista LGBT. Luanda ainda critica o comentário do advogado de que a população LGBT é contra a Polícia Militar. “Nós não somos contra a polícia nem contra qualquer instituição. Somos contra a homofobia, independentemente de quem é o autor.”
Outro lado
Celso Vendramini foi procurado pela reportagem na tarde desta quarta-feira (13). A secretária do escritório do advogado disse que não tinha autorização para passar o contato dele. Afirmou que falaria com Vendramini e retornaria a ligação, o que não ocorreu até a conclusão desta reportagem.
Por Camila Brandalise