(El País, 24/10/2015) Uma empresária e uma dentista, de 32 anos, e uma gerente administrativa, de 34, acabam de jogar por terra o conceito brasileiro de família ao oficializar sua relação em um cartório do Rio de Janeiro. É o segundo trio registrado no Brasil, depois que em 2012 uma caixa, uma auxiliar administrativa e um arquiteto formaram em São Paulo a primeira união poliafetiva estável do país, o equivalente ao casal de fato que, desde 2003, vigora nas uniões civis brasileiras
A escritura assinada pelas três mulheres, que vivem juntas há três anos, as reconhece como família, estabelece a separação de bens e concede autoridade a cada uma delas para decidir sobre questões médicas dos cônjuges. O trio, além disso, contemplou no documento a intenção de que a empresária tenha um filho por inseminação artificial e que na certidão de nascimento do bebê conste os sobrenomes das três. As noivas assinaram também três testamentos nos quais dividem seus bens em caso de morte.
“Somos uma família. Nossa união é fruto de amor. Vou engravidar, e estamos nos preparando para isso, inclusive, financeiramente”, disse a empresária ao jornal O Globo. “A legalização é uma forma de a criança e de nós mesmas não ficarmos desamparadas. Queremos usufruir os direitos de todos, como a licença-maternidade”.
Os tribunais do país ainda não criaram uma jurisdição específica para defender ou anular esse tipo de união, de forma que os argumentos a favor e contra dependem da interpretação de um leque de sentenças de casos particulares. O reconhecimento da união dessas três mulheres, por exemplo, teve como base os fundamentos usados pelo Supremo Tribunal Federal para reconhecer legalmente, em 2011, os casais homossexuais, segundo Fernanda de Freitas Leitão, a tabeliã que casou as três noivas. Desde o ano 2000, muito antes dos tribunais, Freitas vem reconhecendo a união de diversos casais gays, e comemorou publicamente o casamento das três pessoas de São Paulo. Há anos esperava “com ansiedade” poder ser madrinha de um trio em seu próprio cartório.
“O pilar que sustenta qualquer relação de família é o afeto. E essas três mulheres têm tudo para formar uma família: amor, uma relação duradoura, intenção de ter filhos… No direito particular, além disso, o que não está proibido está permitido. Não posso garantir direitos imediatos a elas, terão que lutar nos tribunais para realizar a declaração de renda conjunta ou contratar plano de saúde, mas agora estão protegidas”, disse Freitas.
A polêmica está servida mais uma vez desde a validação dessa união ante a possibilidade de um filho com três mães. O Colégio Notarial do Brasil, assim como fez em 2012, se desvincula das decisões individuais de seus membros, e não faltam juristas que defendem que essa união viola a Constituição. “Esse documento não vale nada. A Constituição brasileira estabelece expressamente que a união estável só pode ser constituída por duas pessoas, e o reconhecimento do Supremo das uniões homossexuais também se refere especificamente a duas pessoas”, diz a advogada especialista em direito familiar Regina Beatriz Tavares, que nega a possibilidade de o futuro filho dessas mulheres poder ter três mães registradas. “A poligamia no Brasil não tem qualquer apoio constitucional. Não defendo um único tipo de família, mas o princípio de união está restrito sempre a relações monógamas, a sociedade brasileira não aceita casamentos de três pessoas, sejam elas do sexo que forem. Cada um pode viver como quiser, mas atribuir direitos familiares significa institucionalizar a poligamia”, acrescenta Tavares, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS).
“Quando comecei a oficializar casais homossexuais acontecia o mesmo, me acusavam de fazer algo ilegal. Todas as uniões acabam abrindo o mesmo caminho. No começo há uma rejeição grande, depois a jurisprudência começa a reconhecer os direitos familiares, até que se normaliza. O Brasil, inclusive, já conta desde 2012 com casos de filhos com mais de dois pais, ao incluir, por exemplo, o doador conhecido de uma inseminação artificial. A história se repete agora”, reate a tabeliã Freitas.
A união oficial desse trio também contraria os pensamentos de qualquer um dos deputados conservadores que mantêm uma batalha no Congresso para restringir as políticas públicas ao modelo de família tradicional formada por um homem e uma mulher. A intenção desses parlamentares, cada vez mais próxima de ser aprovada no Senado, rema em direção contrária ao rumo tomado pela sociedade brasileira.
O modelo de casamento com filhos há anos não é majoritário nos 57 milhões de lares do país, segundo os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2013. Os novos tipos de família (mães solteiras, país que cuidam sozinhos de seus filhos, casamentos sem filhos, uniões homossexuais…) representam 56,1% dos domicílios. Enquanto 75% dos lares eram formados por casais com filhos em 1980, esse número caiu para 43,9% em 2013. Atrás da opção pelo casamento tradicional aparecem os casais sem filhos (19,4%) e os lares com mulheres solteiras com filhos (16,5%).
O debate sobre o poliamor, apesar de ainda estar fora das estatísticas, é um assunto presente em várias capitais pelo Brasil onde se formam grupo, festas e atividades por meio das redes sociais. Especificamente no Rio de Janeiro, a reunião batizada como Poliencontro, onde são debatidas novas formas de entender as relações amorosas entre mais de duas pessoas, já realizou cerca de 10 edições com diferentes eventos em espaços públicos da cidade.
María Martín
Acesse no site de origem: As três namoradas que desafiam a ‘família tradicional brasileira’ (El País, 24/10/2015)