A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado aprovou, no último dia 3 de maio, projeto (PLS 612/2011) que altera o Código Civil para permitir o reconhecimento legal da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Senadores da bancada evangélica, contudo, pediram que o texto fosse votado pelo Plenário. Alegam a necessidade de mais debates. Mas, debater o quê?
(O Estado de S. Paulo, 01/07/2017 – acesse no site de origem)
Há dois tipos de debates: de um lado, o debate em que as partes estão dispostas a mudar de opinião, cedendo ao melhor argumento; de outro, o “debate” em que se barganha, se fazem concessões, enfim, se age conforme determinada estratégia, com o objetivo de realizar certos interesses.
Debates no primeiro sentido são necessários quando não sabemos o que queremos ou, se soubermos, não sabemos como agir. Já no segundo sentido, nós sabemos o que queremos e sabemos também como agir.
O PLS 612/2011 nada mais faz do que tornar legal aquilo que já foi consagrado pela jurisprudência e sedimentado pelos fatos. Noutras palavras, tanto o judiciário, como os grupos sociais afetados já sabem o que querem e como agir. Uma vez que a bancada evangélica, por princípio, carrega consigo certezas inabaláveis, tampouco há entre seus membros dúvidas a respeito daquilo que desejam e repudiam. Logo, o debate pretendido pelos senadores não busca respostas a perguntas relevantes, e sim reverter a decisão da CCJ, com base não no melhor argumento, mas no maior apoio político.
Ao fechar-se à possibilidade de ceder ao melhor argumento, a bancada evangélica impõe o jogo estratégico. De nada adianta apresentar-lhe boas razões, pois o que prevalecem são as correlações de força que resultam da tensão entre os que lutam por reconhecimento e os que, alegando princípios e noções tradicionais de família, o negam.
Essa tentativa de impor a toda a sociedade a própria concepção de mundo, tentando regular a vida de pessoas que lhe são reconhecidamente estranhas e tidas como anômalas, termina por reforçar a identidade LGBT, que, de outra forma não existiria, se não houvesse tamanho preconceito. Entre lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais há de tudo: de anarquistas a fascistas, passando por monarquistas e republicanos, crentes e ateus. Nada, a não ser o preconceito, a perseguição e o ataque que sofrem pode dar coesão e uma identidade coletiva para pessoas tão diversificadas.
Ora, por quê? Por que manter uma atitude que produz exatamente o resultado oposto ao desejado: o surgimento de um sujeito coletivo capaz de oferecer resistência e de interferir na esfera pública com novas propostas e visões de mundo a respeito da família, das questões de gênero e da educação em geral? A homofobia não produziu apenas os guetos que existem em cidades como São Paulo, dos quais a boate gay, o bar de lésbicas e as ruas frequentadas por todo o universo LGBT são alguns exemplos. Mais do que isso, ela fez desses guetos a expressão visível de uma coletividade muito maior.
Pode-se compreender que alguém seja contra o aborto e que, por razões de consciência, se recuse a praticá-lo e queria ver uma proibição universalizada: afinal, não é tão evidente que, do fato de poder dispor sobre o próprio corpo, se deduza que a mulher tenha o direito de abortar. Existem ainda as questões relativas à definição de vida e ao seu início que precisam ser enfrentadas. Se partirmos do pressuposto que a vida humana deve ser protegida do começo ao fim e se concluirmos que ela tem início com a fecundação do óvulo pelo espermatozoide, seremos contra o aborto e gostaríamos de ver essa proibição vigente em toda a sociedade, e não somente entre os fieis, que prescindem das leis do Estado para não abortar.
No entanto, se o aborto, sob a perspectiva religiosa, causa danos irreparáveis a um embrião indefeso, por isso sua proibição, que danos causaria – e para quem – a união estável de pessoas do mesmo sexo? Que danos haveria para uma criança concebida e rejeitada por heterossexuais, se ela fosse adotada por homossexuais, decididos a formar uma família?
Cristo perdoou Madalena, mas muitos cristãos, por razões que talvez somente Freud explique, não somente são incapazes de sequer tolerar um homossexual, como ainda instrumentalizam o Estado para impor sua intolerância e visão de mundo. Em nome de Deus, a quem rotineiramente pedem que sejam perdoados como perdoam quem os ofende, perpetuam, com semelhante atitude, uma tradição de preconceitos, perseguições e discriminações que transformam num martírio a vida daqueles que vivem fora da curva.