(O Globo, 05/11/2014) A maior enquete da história do Portal da Câmara dos Deputados acumula quase três milhões de votos e muita polêmica, tornando-se mais um retrato bem acabado da polarização que tomou conta da sociedade em virtualmente qualquer tema. No ar desde fevereiro, ela pergunta: “Você concorda com a definição de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da Família?”. Até agora, 52,28% dos participantes votaram no sim, e 47,41%, no não — 0,31% revelaram não ter opinião formada —, o que dá uma ligeira vantagem à corrente que exclui casais homossexuais do conceito familiar. O cenário, porém, muda o tempo todo, uma vez que uma verdadeira campanha que envolve progressistas e conservadores está por trás dessa batalha dos cliques. As armas são, basicamente, as divulgações feitas na internet por pastores evangélicos, ativistas pró-direitos LGBT e outros atores sociais. Para se ter uma noção da dimensão que essa disputa tomou, a segunda pesquisa com maior número de participações, sobre o fim do auxílio-reclusão e a criação de um benefício para vítimas de crimes, teve pouco mais de 950 mil votos.
A enquete foi criada pela Coordenação de Participação Popular da Câmara para conhecer a opinião dos cidadãos sobre a definição de família que consta no projeto de lei 6583/2013, que cria o Estatuto da Família. A proposta é do deputado Anderson Ferreira (PR-PE), integrante da bancada evangélica, e inclui a criação da disciplina escolar “Educação para a família” e a celebração, em todas as escolas públicas e privadas, do Dia Nacional de Valorização da Família (21 de outubro). Por conta da polêmica, surgiu até uma comissão especial para analisar o projeto de lei, presidida pelo deputado federal Leonardo Picciani (PMDB-RJ).
SILAS MALAFAIA X JEAN WYLLYS
A campanha maciça pelo sim é liderada por pastores como Silas Malafaia e Marco Feliciano, deputado federal pelo PSC-SP. O não ganhou o reforço do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ). No dia em que Malafaia, presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, pediu votos aos seus mais de 800 mil seguidores do Twitter, o site oficial da Câmara saiu do ar, tamanho foi o volume de acessos. Já o pico de votação pelo não ocorreu no dia da parada LGBT de Brasília, 7 de setembro.
Mesmo sem valor estatístico algum, as partes acreditam que o resultado da enquete pode ser utilizado como argumento para fazer o projeto de lei avançar ou não. Incentivando seus mais de 589 mil seguidores do Facebook a votar na enquete, Jean Wyllys acredita ser importante que os cidadãos participem do debate político.
— O interessante da enquete é que ela fomenta uma discussão e a mobilização de forças contra e a favor da proposta. Muitas pessoas entram no debate desinformadas, mas saem um pouco mais conscientes sobre a questão — observa o deputado, considerando que o Estatuto da Família fere princípios básicos da Constituição, como o da dignidade humana e o da não discriminação. — O Supremo Tribunal Federal já garantiu o direito dos homossexuais ao casamento. Ou seja, o Judiciário deu o recado de que as famílias homoafetivas têm que ser reconhecidas. Cabe agora ao Legislativo dar força de lei a isso, não tentar reverter esse progresso.
O grupo de cidadania LGBT Arco-Íris também movimenta as redes sociais pela aceitação de um conceito amplo de família.
— Todo formato de família é válido. Há aquelas constituídas por avós, sobrinhos, pessoas divorciadas, casais homoafetivos, mães ou pais solteiros… Não faz sentido o Poder Legislativo fechar os olhos para todas essas famílias, que já existem e precisam de respaldo — afirma Julio Moreira, presidente do Grupo Arco-Íris, que diz não querer incentivar um clima de guerra entre os internautas. — Essa disputa acirra ranços entre partes da sociedade.
Do outro lado do cabo de guerra, a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família sugere que seus membros votem pela “família natural”.
— Acreditamos que a maioria da população brasileira reconhece a família formada a partir da união entre homem e mulher, aberta à fecundidade, como a primeira e principal instituição humana a ser sempre defendida — diz Hermes Rodrigues Nery, diretor de imprensa da associação. — A legislação não pode se basear somente no consenso político, mas também na moral que se fundamenta em uma ordem natural objetiva.
DOS 800 MIL PARA 4 MILHÕES DE PARTICIPAÇÕES
Diretora da Coordenação de Participação Popular, Simone Ravazzolli diz que as redes sociais são as maiores motoras da enquete, que ganhou um “efeito viral”. Hoje, grande parte das colaborações também vem do aplicativo WhatsApp. Isso fez com que mais gente chegasse ao canal interativo da Câmara, que, este ano, já conta com mais de 4 milhões de participações — em 2013, foram apenas 800 mil, o que seria um sinal inegável de maior interesse das pessoas por temas políticos.
— Estamos sempre preocupados em aumentar a participação da população no processo legislativo. Antes da criação da enquete, por exemplo, muita gente nem sabia que o Estatuto da Família tava sendo debatido na Casa — explica Simone, que, junto à sua equipe, transforma os dados das consultas populares em relatórios, repassados aos deputados. — As informações do Disk Câmara e das enquetes on-line servem para que eles possam se posicionar a partir do interesse do povo. Sabemos que o universo das pessoas que conhecem esses canais é pequeno diante do tamanho do Brasil. Portanto, mais importante do que o resultado da enquete em si é o interesse da população nos temas debatidos.
Disposta em investir no termômetro popular, em dezembro a Câmara começará a testar uma nova ferramenta que a ajudará a identificar os temas tratados pelo Poder Legislativo mais debatidos nas mídias sociais, fora dos canais institucionais.
— A participação da população ajuda a promover o debate, mas é claro que a enquete não tem valor de dado estatístico, por isso o resultado tem de ser avaliado com cuidado — afirma Leonardo Picciani, presidente da comissão que analisa o Estatuto da Família. — A ferramenta permite que o usuário se manifeste várias vezes, por exemplo, e o resultado varia de acordo com o engajamento de cada grupo ativista.
Para o deputado, que diz não ter posição pré-concebida sobre o tema, é natural que, neste momento do país, o debate seja “acalorado” e desperte “posições apaixonadas” dos dois lados:
— Estamos em fase de audiências públicas na Câmara, e espero que o relator apresente seu texto até o final desta legislatura.
Marina Cohen
Acesse o PDF: Enquete sobre a definição de família tem votação recorde no site da Câmara (O Globo, 05/11/2014)