(Época, 09/03/2015) O Estatuto da Família ignora as mudanças na sociedade e o avanço da tolerância, ao tentar impor uma visão única
A proposta do Estatuto da Família (PL 6.583, de 2013) é uma tentativa de negar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de reconhecer o casamento civil homoafetivo. O projeto considera família apenas “o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher por meio de casamento ou união estável, ou ainda formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. O relator do projeto pretende perenizar essa concepção como modelo único e levá-la às escolas. O projeto não apenas nega a diversidade dos vários arranjos familiares presentes na sociedade, como propõe a criação de um conselho que, por admitir apenas um tipo de família, se aproxima de uma concepção fascista. Em 2014, ao pedir vista, seguida por outros parlamentares, evitei que o parecer fosse aprovado, na última reunião da Comissão Especial que examinava o tema. Com o desarquivamento dessa proposta na Câmara, será necessário mobilizar, mais uma vez, o apoio da opinião pública para evitar sua aprovação.
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A Constituição já foi interpretada por quem tem essa responsabilidade: o STF. A decisão histórica da Suprema Corte não se embasou em uma lei que permita o casamento civil homoafetivo, pois essa lei nunca existiu, nem precisaria existir. Mais ainda: a decisão do STF mostrou que nenhuma lei que busque suprimir os direitos das pessoas homoafetivas encontrará guarida naquela Corte. O Judiciário não modificou o conceito de família, incluindo a homoafetiva, por um ato unilateral. Isso foi feito porque esse tipo de família já tem reconhecimento e espaço de convivência na sociedade brasileira.
Uma leitura do parecer mostra que o relator do projeto na Câmara o escreveu com as tintas do ódio homofóbico. Tentou dar foros de constitucionalidade a algo inconstitucional e atentatório ao sistema legal. É inadmissível um relatório que afaste os conceitos de família e afeto. O relator tenta justificar seu preconceito, ao sustentar que a) é preferível deixar crianças em abrigos a autorizar sua adoção por famílias homoafetivas, b) famílias homoafetivas causam prejuízo ao Erário e c) afetividade é um tipo de egoísmo. O relator buscou levar insegurança jurídica às famílias homoafetivas, a fim de alimentar um projeto de poder que pressupõe a hierarquização dos seres humanos e o rompimento da laicidade do Estado.
A realidade social brasileira mudou muito nas últimas décadas. Hoje, pessoas com orientações sexuais das mais diversas não vivem mais nas sombras. Atualmente, o conceito de família vai muito além do núcleo homem-mulher-descendentes. Parte das crianças convive com ex-cônjuges da mãe ou do pai, tem irmãos unilaterais, é criada por avós ou tios. O direito de família está em transformação e cabe ao legislador reconhecer as mudanças. Quando o legislador se omite, os tribunais apenas reconhecem em suas decisões o que a sociedade já reconheceu.
É preciso aprender a conviver na diversidade e no respeito ao Estado Democrático de Direito. Ao pretender excluir os inúmeros outros arranjos familiares – pelo menos 11 –, a proposta de Estatuto da Família os joga na doída vala da discriminação. Em uma sociedade heteronormativa e com tantas marcas homofóbicas, propostas como essa significam um escárnio, um acinte, um desdém à dor das vítimas da discriminação, à própria democracia e ao avanço ao direito de ser, de amar e de viver a nossa humanidade de forma integral e universal. São proposições que esbofeteiam a democracia e pisoteiam a Constituição. Um retrocesso inaceitável!
Acesse no site de origem: Estatuto da Família: atentado à dignidade e aos direitos humanos, por Erika Kokay (Época, 09/03/2015)