Flávia Biroli: Estigmatização e violência verbal contra LGTB se tornaram estratégia para alavancar carreiras políticas

30 de agosto, 2015

(Viomundo, 30/08/2015) Assistimos ao maior avanço conservador no País das últimas décadas.

Conquistas vitais para a garantia de pluralidade e de direitos estão ameaçadas.

Uma das vítimas desse processo é a proibição do ensino de gênero nos planos estaduais e municipais de Educação.  O caso mais recente é cidade de São Paulo.

Por  pressão de grupos religiosos, foram eliminados do projeto de lei que trata do Plano Municipal de Educação de São Paulo as referências à palavra gênero e trechos da Lei Orgânica do Município e do Plano Nacional de Direitos Humanos que garantiriam igualdade no ensino municipal.

Na primeira votação, em 11 de agosto, 42 votos vereadores votaram pela eliminação das questões de gênero e dois contra. Na segunda, em 25 de agosto, foram 43 votos a favor e quatro contra: Toninho Vespoli (PSOL), Juliana Cardoso (PT), Claudio Fonseca (PPS) e Netinho de Paula (PDT).

Em meio à crescente visão obscurantista, uma luz no fim do túnel: a Nota Técnica 18/2015 do Ministério da Educação (na íntegra, ao final).

Feita a partir de demanda da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, que solicitou posicionamento do MEC sobre o tema, ela coloca os pingos nos is. Por exemplo:

Em primeiro lugar, é preciso  reafirmar que os conceitos de gênero e de orientação sexual, sem  negar-lhes sua  relevância  política,  são conceitos  científicos, construídos em  bases acadêmicas. Os estudos de gênero e  sexualidade formam um  campo   de  pesquisa e produção de conhecimento reconhecido internacionalmente, apropriado no Brasil desde a década  de  1970.

O conhecimento científico  já produzido  neste campo  nos leva à compreensão de que o centro  do debate não está em se a escola  deve ou  não falar sobre  gênero  e orientação sexual, mas, sim, em perceber como ela já fala – onde, quando por que caminhos e com que efeitos.

“A Nota vem num bom momento”, avalia a professora Flávia Biroli. “É uma ação política importante que esclarece que os estudos de gênero têm, sim, uma posição. É a posição a favor do respeito às pessoas, da cidadania, da democracia.”

“No entanto, é preciso muito mais”, prossegue. “Precisamos de campanhas – e isso o Executivo pode fazer – para ampliar o debate sobre a democracia e o respeito à diversidade.”

Flávia Biroli é vice-diretora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e uma das maiores autoridades brasileiras nos estudos de gênero.

Nós conversamos também sobre a onda conservadora e a eliminação das questões de gênero em vários planos estaduais e municipais de Educação

Viomundo – Em vez de avançarmos, estamos retrocedendo. O que está acontecendo, professora?

Flávia Biroli — Nas últimas décadas, houve avanços na ampliação de direitos e no entendimento de que a democracia depende da garantia de respeito a diferenças. O que vivemos neste momento é uma reação conservadora a essas conquistas e na qual os grupos religiosos têm papel central.

No caso dos Planos de Educação, a Igreja Católica tem tido papel de liderança, mas a reação apresenta uma dinâmica, que está bastante relacionada à forma de ocupação de espaços pelos grupos religiosos organizados pentecostais e neopentecostais.

Entre pentecostais e neopentecostais, a reação conservadora, na forma de estigmatização e violência verbal contra a população LGBT, por exemplo, não se tornou uma estratégia para a construção de carreiras políticas? Temos que pensar nisso.

Viomundo — Tenho a impressão de que muitos parlamentares estão vetando o debate sobre gênero sem saber exatamente o que significa, inclusive batem na tecla de que o objetivo é defender a família. É isso mesmo?

Flávia Biroli – Para começar, não há família, há famílias. São muitas as relações de afeto, as formas de co-habitação, de criação das crianças, de apoio recíproco.

Defesa da família é política para creches e ensino integral.

Defesa da família é política contra a violência doméstica.

Defesa da família é política para que todas as famílias tenham uma renda que permita uma vida digna para as crianças.

O que estão fazendo é usar uma noção idealizada da família como forma de promover uma visão excludente, conservadora, que tem como consequência a restrição de direitos e não garantias para as pessoas. Não são as pessoas que estão no centro das preocupações desses grupos, mas ideais religiosos e objetivos políticos pragmáticos.

Viomundo — Quais as consequências dos vetos municipais e estaduais?

Flávia Biroli — O veto à diversidade e igualdade de gênero nos Planos de Ensino significa que deixamos de ter orientações para o respeito à diversidade nas escolas.

Professoras e professores ainda podem implementar uma educação inclusiva, de respeito e reconhecimento da dignidade, independentemente de raça, gênero, sexualidade. Mas estão mais sozinhos…Eles terão que travar as disputas, uma a uma. É como se o Estado se retirasse e ficasse a mensagem de que essa não é uma questão importante.

Viomundo — Ao mesmo tempo, o MEC acaba de lançar uma Nota Técnica que trata da questão. O que acha dela?

Flávia Biroli – A Nota vem num bom momento. É uma ação política importante, que esclarece que os estudos de gênero têm, sim, uma posição. É a posição a favor do respeito às pessoas, da cidadania, da democracia.

No entanto, é preciso muito mais. Precisamos de campanhas – e isso o Executivo pode fazer – para ampliar o debate sobre a democracia e o respeito à diversidade.

Viomundo — Considerando que a Nota Técnica é do MEC, ela abre uma janela na escuridão?

Flávia Biroli – É, como eu já disse, uma ação política importante, sinaliza uma posição, mas é necessário mais. É necessário que tenhamos ações continuadas para um processo de educação plural e democrático.

No contexto atual, é importante que a laicidade do Estado seja garantida. Sem ela, a pluralidade – inclusive de crenças religiosas – está ameaçada e as pessoas são alvo de violência e de desrespeitos.

Veja bem, não são os estudos de gênero que conectaram pluralidade e cidadania à laicidade. Isso está no cerne do pensamento liberal, em toda sua história. Essas reações não são contra o gênero, são contra a democracia.

Viomundo –Por que é importante discutir gênero nas escolas?

Flávia Biroli  — Há uma falsa neutralidade, que encobre uma série de problemas. O sexismo e a homofobia comprometem o rendimento escolar de meninas e meninos, constroem um ambiente de constrangimento em vez de respeito.

Há muita violência nas escolas, violência sexual e agressões baseadas em machismo e homofobia. A inclusão da diversidade e igualdade de gênero nos currículos pode colaborar para construir novas referências, para afirmar valores democráticos, em que a igualdade ganhe substância e as diferenças sejam respeitadas.

Em março, na Grande São Paulo, um adolescente foi espancado na escola por ser filho adotivo de homossexuais. Ele veio a falecer por causas naturais. De qualquer forma, é um exemplo do tipo de violência envolvida na recusa de lidar com essas questões.

A pluralidade é um fato e a escola, no processo de socialização, tem papel fundamental na construção dessa pluralidade. É a pluralidade na sexualidade, nos afetos (e formas de construção das famílias), racialmente, etnicamente.

Temos duas alternativas. Ignorar essa pluralidade, silenciando tantas experiências e legitimando a violência contra os “desviantes”.  Ou construir uma sociedade na qual a diversidade seja respeitada e possamos conviver respeitosa e solidariamente com aqueles que são diferentes da gente.

Nota tec 18-2015 MEC.pdf

Conceição Lemes

Acesse no site de origem: Flávia Biroli: Estigmatização e violência verbal contra LGTB se tornaram estratégia para alavancar carreiras políticas (Viomundo, 30/08/2015)

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