“Homofobia é um dialeto do machismo”, diz cientista social Ferdinando Martins

15 de outubro, 2014

(Jornal do Campus, 15/10/2014) Formado em ciências sociais pela USP, o professor Ferdinando Martins luta pelos direitos humanos desde a graduação. “Minha militância é anterior à minha entrada como professor na Universidade”, diz ele. Hoje professor doutor da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) de disciplinas ligadas à cultura e à arte, ele, além de lecionar, é diretor do Teatro da USP (TUSP) e vice-coordenador do programa USP Diversidade. “Comecei como coordenador, mas virei diretor do TUSP e não ia conseguir dar conta. Porém continuo como vice para dar prosseguimento a alguns projetos”.

Para vice coordenador do USP Diversidade, ambiente universitário reflete preconceito da sociedade. (Foto: Arquivo pessoal)

Em funcionamento desde agosto de 2012, o USP Diversidade é uma iniciativa da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária (PRCEU) voltada à questão da diversidade, não só sexual, mas abrangendo também ações de combate ao racismo, ao sexismo e à violência contra as mulheres. Em entrevista ao Jornal do Campus, o professor Ferdinando Martins falou um pouco sobre a questão do preconceito e dos direitos humanos na USP e na sociedade brasileira em geral.

Jornal do Campus: Desde quando o senhor atua em prol dos direitos humanos? Como começou na militância? Por que decidiu defender a causa?

Ferdinando Martins: Começou quando eu estava na graduação, no final dos anos 80, início dos anos 90. A USP tinha um grupo de direitos humanos chamado Caehusp (Centro Acadêmico de Estudos Homoeróticos da USP), que surgiu na Letras inicialmente, isso entre 89 e 90. Esse grupo durou aproximadamente dez anos. Depois disso houve outros, mas a minha militância é anterior à entrada como professor.

Sempre achei injusto ser inferiorizado por algo que não depende da escolha ou da vontade própria. Ninguém escolhe ser gay ou negro ou mulher, por que então ser tratado diferente? Acho que toda militância parte de questões particulares, subjetivas, da história de cada um, mas com o desejo de que a justiça seja feita para todos, que os direitos sejam garantidos e que não haja discriminação por nada que esteja além da nossa vontade.

JC: Como se tornou vice-coordenador do USP Diversidade? Desde quando está no programa?

FM: Na verdade, já fui coordenador. Ele surgiu no primeiro ano da gestão da professora Maria Arminda do Nascimento Arruda. Havia um programa que tratava de homossexualidade na USP, mas ele ainda não tinha realizado ações. Quando a professora Maria Arminda, que é a atual Pró-Reitora de Cultura e Extensão Universitária (PRCEU) da USP, assumiu, em 2010, ela viu que faltava um programa que focasse mais na questão da diversidade, não só a diversidade sexual, mas também que abrangesse ações de combate ao racismo, ao sexismo e à violência contra as mulheres e instituiu um grupo de trabalho. Para ele, foram convidados vários professores que atuavam na área, com histórico de militância, e fui convidado a ser o vice-coordenador desse grupo. Elaboramos a proposta de criação do programa USP Diversidade e ele foi criado em 2011 e passou a exercer suas atividades no ano seguinte. Oficialmente, começou a funcionar no dia 22 de agosto de 2012.

Como eu era do grupo de trabalho inicial, me tornei o primeiro coordenador do programa. Só que eu acumulava dois cargos, porque eu era também vice-diretor do Teatro da USP (TUSP). No início deste ano, me tornei diretor do Teatro da USP e não dava pra conciliar os dois cargos, seria muito trabalho para uma pessoa só. Então a coordenadora se tornou a professora Heloísa Buarque de Almeida, da faculdade de antropologia da FFLCH, e eu, para dar continuidade a alguns projetos já existentes, me tornei o vice dela.

JC: Quais os trabalhos do programa? Qual a sua importância?

FM: O programa USP Diversidade faz parte do Núcleo dos Direitos da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária (PRCEU). Ele faz ações voltadas, inicialmente, para a questão da diversidade sexual e do sexismo, da violência contra a mulher, dos casos de estupro que há na USP e tudo mais.

Ele faz um atendimento dos casos que merecem intervenção, como, por exemplo, os recentes casos de estupro na Faculdade de Medicina (FMUSP). Esses casos na Medicina são reais e isso é um grande problema para nós, porque há uma tentativa de não se falar sobre o assunto. No entanto, ele é um problema na Universidade. O número de casos de estupro dentro da USP é elevado, a gente não pode tapar o sol com a peneira. O que acontece, geralmente, é que, quando ocorrem esses casos, eles acabam sendo ocultos dentro da própria Universidade. Existe uma tentativa de acobertaá-los, sobretudo quando se está lidando com cursos mais tradicionais, como medicina e engenharia. Também há a questão, não de estupro, mas de violência contra a mulher na Poli e nas Ciências Sociais também já houve casos assim. Então existe sempre uma tentativa de acobertar.

A gente tem uma cultura machista que sempre vai considerar a violência contra a mulher como um problema menor, que foi a mulher que provocou, ou, ainda, que, se você conhecia o seu colega de sala que te estuprou, não foi um estupro, foi consensual. Já ouvi isso: “não, mas ela conhecia, então, se ela conhecia, foi consensual”. Não, o fato de você conhecer a pessoa não muda nada. Pode ser seu namorado, você pode conhecer muito bem a pessoa, mas estupro é estupro. Sem consentimento é violência.

Geralmente, esses casos não vêm diretamente pra nós. Eles vão parar nas comissões dentro da própria unidade, não é algo que venha diretamente pro Diversidade. Nós somos chamados em alguns casos para caracterizar que, de fato, houve uma agressão e que não é possível ocultar.

A gente tem esses casos mais graves, mas tem outros casos que são, digamos, menos agressivos. Por exemplo, em Piracicaba, na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), uma aluna colocou silicone, como é direito dela. Ela começou a ser chamada de “x peito” e sofreu tanta perseguição que abandonou o curso. A pessoa entra num curso que é bastante concorrido e é constrangida de tal maneira que abandona o curso por conta de uma decisão que foi pessoal dela. Cada um faz do seu corpo o que bem entender.

Você tem casos no Conjunto Residencial da USP (Crusp) do interior de fichas da assistência social solicitando a moradia em que homens escrevem que não querem dividir o quarto com gays. Com mulheres, é muito comum encontrar fichas dizendo “não quero dividir com gorda”.

Num primeiro momento, tentamos dar conta desses casos, só que sempre esbarramos na questão do “ah, isso não existe”. Sempre havia uma desculpa de que o que estávamos fazendo não era verdade, que não era bem assim. Por conta disso, a professora Heloísa Buarque de Almeida, coordenadora do USP DIversidade, junto com  o professor Gustavo Venturi, da Sociologia, está montando uma pesquisa que vai ser a primeira a tratar de homofobia, de violência contra a mulher e de racismo na USP. Está sendo uma pesquisa bastante grande porque queremos ter dados para mostrar que, de fato, é um problema. Inicialmente, a pesquisa vai servir para dentro da própria Universidade, para se ter a dimensão dessa forma de violência.

Fora isso, tentamos uma articulação com os diferentes grupos de militância dentro da USP. Temos também ações culturais, tivemos uma exposição de fotografia ano passado que promoveu uma conscientização sobre a homofobia. Fizemos a I Jornada de Diversidade Sexual da USP, de São Paulo e do interior. Realizamos ciclos de debate para mostrar qual é a produção acadêmica da USP sobre temas relacionados à diversidade sexual.

JC: O senso comum adora dizer que o Brasil é o país da diversidade, mas, na prática, sabe-se que não é isso o que acontece. Para o senhor, por que ainda existe tanto preconceito?

FM: O que acontece é que, na verdade, você tem bolhas diferentes dentro da sociedade brasileira. A gente vê isso dentro da própria USP. Por exemplo, a questão da homossexualidade é muito tranquila na ECA, mas atravessa a rua e vai pra FEA pra ver se ela é tão tranquila assim. Não é. Caminha mais um pouco e vai pra Poli, ela se torna um problema.

A USP é um reflexo do que acontece na sociedade brasileira fora dos seus muros. Você vai ter grupos em que a homossexualidade vai ser uma questão tranquila de ser tratada e outros bastante resistentes. Infelizmente, estamos vivendo uma onda conservadora que tem o avanço de posições bastante contraditórias. É o caso dos evangélicos que falam que vão defender a família. Ok, vão defender a família, mas isso não quer dizer excluir o membro da família que é homossexual, porque os homossexuais também vêm de famílias e constituem famílias.

JC: Como o senhor enxerga o fato de que os três candidatos à presidência com maior número de votos não trataram dos direitos da comunidade LGBT em suas campanhas e nos debates?

FM: A Marina é um caso à parte, porque ela tem um comprometimento com os evangélicos e isso é muito complicado, porque eles declaradamente são homofóbicos. A maior parte dos evangélicos  é homofóbica. Uma homofobia que se disfarça de liberdade de expressão. Ou seja, eles têm um discurso de ódio que é enxergado como um direito, uma vez que, no Brasil, a liberdade de expressão é encarada como um direito. Então o caso da Marina nós temos que deixar de lado, porque ela se alinha com um grupo que é contra os direitos da comunidade LGBT e ela mesma é contra. Quando ela fala do contrato civil, ela está mais atrasada do que a sociedade brasileira, porque o judiciário já reconhece o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

No caso do PT e do PSDB, da Dilma e do Aécio, os dois têm um histórico e uma posição muito parecidos, porque ambos promoveram avanços significativos para o segmento LGBT, mas, ao mesmo tempo, tanto o PT quanto o PSDB, em alguns momentos, deram pra trás. Porque ainda é uma questão polêmica e por isso, em alguns momentos de comprometimento político, ela acaba sendo utilizado como instrumento de negociação, sobretudo quando é uma negociação com os partidos predominantemente evangélicos. Não dá pra falar que o PT defende e o PSDB não ou vice versa, porque os dois têm avanços.

O PT, de um lado, fez , na gestão do Lula, a I Conferência Nacional LGBT, na da Dilma fez a II, foi criado, na gestão da Dilma, o disque denúncia à homofobia, foi criada uma coordenação específica para a diversidade sexual dentro da secretaria especial de direitos humanos, foi dada uma ênfase na aplicação do que foi decidido nas conferências, no programa Brasil Sem Homofobia. Você vê isso e fala que o PT está bem avançado, mas, como eu disse,  de vez em quando eles dão pra trás. É o caso, por exemplo,  de quando a Dilma vetou o chamado “kit gay” , que era um programa de combate à homofobia nas escolas, em troca do apoio dos evangélicos na CPI do Palocci. Ele estava sendo acusado de corrupção, era um dos principais nomes do governo e, para que não fosse instalada um CPI, ela trocou o veto desse programa pelo apoio dos evangélicos. Dá pra dizer que a Dilma é homofóbica? Não dá. Tem umas pisadas de bola, mas, no último pronunciamento dela, ela foi completamente a favor da  diversidade sexual, publicamente.

O mesmo acontece com o PSDB. Se pensarmos no estado de São Paulo, os maiores avanços foram nas gestões do PSDB. O Alckmin foi o primeiro governador do Brasil a assinar uma lei, que é a 10.948, de 2001, que pune a homofobia no estado de São Paulo. Quando o Serra foi governador, ele criou um programa inédito, que é o Centro de Referência para Travestis e Transexuais, ou seja, várias questões de saúde são muito específicas de travestis e transexuais, como, por exemplo, a hormonização, quando é possível começar a tomar hormônios com supervisão médica. Foi o Serra que criou esse programa, assim como, quando o Serra estava na prefeitura, ele criou a CADS, que é a Coordenadoria de Assuntos da Diversidade Sexual. Depois, como governador, ele criou a mesma coordenadoria no âmbito estadual. Ou seja, o PSDB tem ações bastante significativas de combate à homofobia. Dá pra dizer que eles são completamente comprometidos? Não dá.

Em relação aos direitos LGBT, nós temos que pensar nisso. Os dois partidos estão no mesmo pé, com vários avanços significativos e alguns momentos de retrocesso.

JC: Em maio deste ano houve um caso de racismo na Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). Em casos como este, o USP Diversidade intervém de alguma forma?

FM: Ainda não, mas queremos intervir. Dentro da USP tem o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro (Neinb – USP), que é um grupo de pesquisa sobre questões relacionadas ao racismo, mas a ideia é que o USP Diversidade, aos poucos, vá ampliando a sua atuação. O que a gente fez em relação a racismo ainda foi muito pouco. Atualmente, o foco é mais na diversidade sexual e na questão de gênero, da violência contra a mulher e estupro, que são questões que andam juntas. Quem respeita a mulher respeita o gay, costuma ser assim. A homofobia é um dialeto do machismo.

JC: Quais o senhor acha que foram suas conquistas em prol da luta pelos direitos humanos até hoje? E o que pretende para o futuro?

FM: É tanta coisa que ainda precisa ser feita, que às vezes parece que estamos fazendo um trabalho de formiguinha, mas acho que só o fato de a USP ter institucionalizado um programa de diversidade sexual já é uma grande conquista. Pro futuro, pretendemos ampliar isso e ter, cada vez mais, pessoas comprometidas dentro da Universidade. Essa não é uma questão que afeta só os LGBTs, ela vai além disso. Um ambiente que respeita a diversidade, que respeita a mulher, acaba sendo mais produtivo, onde as pessoas se sentem melhor e em que os conflitos são resolvidos de uma maneira mais tranquila.

Victoria Salemi

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