Judiciário legitima grupos familiares diferentes enquanto Congresso debate restrição a direito

02 de março, 2015

(O Globo, 01/03/2015) Enquanto o Congresso ressuscita projetos que tentam impedir a adoção de filhos por casais homossexuais e restringir o conceito de família às formadas pela união de um homem com uma mulher, a Justiça toma diariamente decisões legitimando diferentes tipos de grupos familiares — como uniões homoafetivas, multiparentalidade e famílias simultâneas. Na maior parte dos casos, os juízes levam em consideração, principalmente, o afeto entre as pessoas.

A multiparentalidade é a possibilidade de uma pessoa ter, formalmente, mais de um pai ou mãe. O primeiro caso que se tem conhecimento no Brasil aconteceu no Paraná, em fevereiro de 2013. O juiz Sergio Kreuz, da Vara de Infância e Juventude da comarca de Cascavel, concedeu a um adolescente de 14 anos o direito de ter dois pais e uma mãe em seu registro de nascimento. Outro exemplo de multiparentalidade é o caso recente em que a Justiça de São Paulo deu aos pais de barriga de aluguel o direito de registrar o bebê adotado, junto com a mãe biológica.

Outra decisão vanguardista foi tomada em setembro pelo juiz Juarez Morais de Azevedo, da Vara Criminal e da Infância e da Juventude de Nova Lima, em Minas Gerais. Ele autorizou a adoção de uma criança por um casal, sem excluir a mãe biológica do registro civil. Os pais adotivos são tios do menor e o criam desde seu nascimento, já que a mãe do bebê morreu depois do parto e o pai biológico é desconhecido. A manutenção da mãe na certidão se justificou pelo fato de que a criança não foi abandonada e, portanto, não era razoável ter a perda formal do vínculo.

Também tem sido cada vez mais comum nos tribunais o reconhecimento de famílias simultâneas — ou seja, quando um homem ou uma mulher mantém relações conjugais fora do casamento e o outro parceiro conquista direitos importantes, como a pensão ou parte da herança. Existem decisões em todo o país que concedem direitos iguais às famílias paralelas.

— Situações como essas nem sempre são aceitas ou bem-vistas pela sociedade de uma maneira geral, mas não por isso deixam de ser legitimadas pelo Judiciário. Isso demonstra que a preocupação com o ser humano precisa ser mais aprofundada e ultrapassa a discussão conceitual — avalia o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), João Ricardo Costa.

Para a juíza Andréa Pachá, que trabalha há anos em varas de família, não há regra para tomar decisões nesses casos polêmicos — a não ser a cautela e a sensibilidade para perceber o que é melhor para cada família:

— Estamos vivendo um momento de profunda transformação. A partir de uma jurisprudência inovadora em matéria de família, estamos construindo uma maneira de enfrentar esses conflitos. O juiz tem independência para encontrar a melhor forma de equacioná-los. Tudo o que chega à Vara de Família precisa ser observado no caso concreto.

NA CÂMARA, PROJETO CONSERVADOR EM DEBATE

A união de casais do mesmo sexo foi reconhecida em maio de 2011 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Dois anos depois, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou uma resolução proibindo que os cartórios se recusem a celebrar casamentos civis de casais do mesmo sexo ou a converter em casamento a união estável homoafetiva. Enquanto isso, a discussão de outras formas de família segue lenta no Congresso Nacional.

Tramita hoje na Câmara dos Deputados um projeto de lei que institui o Estatuto da Família — uma resposta mais conservadora dos parlamentares em relação ao Judiciário. Pela proposta, uma família deve ser composta a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio do casamento ou da união estável. O relator do projeto, deputado Ronaldo Fonseca (PROS-DF), favorável ao projeto, incluiu em seu relatório o fim da adoção de crianças por casais homossexuais.

Autor do projeto, o deputado Anderson Ferreira (PR-PE) entende que a homossexualidade é um desvio. O estatuto prevê que as escolas divulguem relatórios anuais sobre a relação dos alunos com suas famílias, a instituição do 21 de outubro como Dia Nacional da Valorização da Família e a inclusão no currículo escolar da disciplina Educação para a Família. O texto é bombardeado, não só por segmentos LGBT e outros setores da sociedade civil.

No Senado, tramita outro projeto, criando o Estatuto das Famílias. Oposto ao da Câmara, reconhece a relação homoafetiva como entidade familiar. O relator, senador João Capiberibe (PSB-AP), elaborou parecer favorável à proposta.

Carolina Brígido

Acesse o PDF: Na contramão do Congresso, Justiça legitima grupos familiares diferentes (O Globo, 01/03/2015)

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