(Folha de S.Paulo, 04/08/2016) O mundo de Pantera Negra, o herói da Marvel Comics que provém de Wakanda, um país africano fictício, está a ponto de se expandir. No mês passado, a Marvel anunciou uma série derivada, “World of Wakanda” (“Mundo de Wakanda”, em tradução livre), cujo primeiro exemplar deve ser lançado em novembro.
E exatamente como a atual série “Pantera Negra”, escrita por Ta-Nehisi Coates, escritor e colunista da revista “The Atlantic”, a nova revista em quadrinhos será escrita por novatos no setor: a escritora feminista Roxane Gay e a poeta Yona Harvey.
“Meu agente não gostou nem um pouco de eu aceitar mais um projeto”, disse Gay. Mas aprender a escrever para quadrinhos é um exercício de áreas diferentes da criatividade, que ela disse considerar empolgante.
“É a coisa mais bizarra que já fiz na minha vida, e digo isso no melhor sentido possível”, ela afirmou.
A história da qual ela é autora, escrita em parceria com Coates, acompanhará Ayo e Aneka, duas amantes que são antigas integrantes da Dora Milaje, a força de segurança feminina de Pantera Negra. “A oportunidade de escrever sobre mulheres negras e mulheres negras homossexuais, no universo da Marvel… não há como recusar a proposta”, ela disse.
A primeira edição de “World of Wakanda” incluirá uma segunda história, de 10 páginas, escrita por Harvey, e será protagonizada por Zenzi, uma revolucionária que incita um tumulto na primeira série de “Pantera Negra”. Coates, que foi o responsável pela seleção das duas escritoras, disse acreditar que é importante ter vozes femininas para ajudar a instalar vida nesses personagens. “As mulheres são muito, muito importantes na vida de Pantera Negra”, ele disse.
Coates relembrou uma conferência, dois anos atrás, na qual Gay leu um conto sobre zumbis. “Foi a mais surpreendente, inesperada e bacana história de zumbis que alguém poderia ouvir”, disse Coates. “O espaço é tão curto, e você precisa falar com grande força. Para mim, ela parecia uma escolha natural como autora de quadrinhos”.
Não surpreende que a Marvel tente aproveitar o sucesso de “Pantera Negra”. O anúncio de Coates estava sendo aguardado com muita expectativa. E os quadrinhos, desenhados por Brian Stelfreeze, foram sucesso comercial e de crítica. A primeira revista, lançada em abril, vendeu mais de 300 mil cópias, número sem dúvida reforçado pelo interesse dos colecionadores e dos curiosos. Os números dois e três, cujas vendas são tipicamente mais indicativas do número de leitores firmes, em qualquer série de quadrinhos, tiveram vendas superiores a 75 mil cópias.
Ter um grupo tão diversificado de criadores, especialmente mulheres, é algo que surge em um momento importante. Embora os quadrinhos sobre super-heróis venham realizando grandes avanços em termos de diversidade, nos seus elencos de personagens, o mesmo nem sempre pode ser dito quanto aos seus redatores e desenhistas. Essa disparidade foi parte da discussão quando a Marvel anunciou que Riri Williams, uma menina negra genial de 15 anos de idade, vestiria a armadura do Homem de Ferro. Ela foi criada pelo escritor Brian Michael Bendis, que é branco, e pelo artista brasileiro Mike Deodato.
“Por que deveríamos priorizar o ponto de vista de criadores brancos e homens quando um personagem não branco e não homem tem o papel central na trama?”, escreveu Abraham Riesman, editor do The Vulture, um site da revista “New York” que cobre quadrinhos. “Não estamos perdendo uma imensa oportunidade ao não usarmos pessoas parecidas com esses personagens para contar suas histórias?” A conclusão dele: “A Marvel precisa de mais criadores negros, de mais criadoras mulheres, ponto, para produzir todo tipo de série”.
Axel Alonso, o editor chefe da Marvel, disse que “eu não me apressaria a concluir que a reação online” – em referência ao debate sobre se um homem branco deveria ser o criador da série protagonizada por Riri – “seja indicativa da resposta dos leitores” em termos mais gerais.
Ainda assim, uma das metas da Marvel, e uma meta estabelecida muito tempo atrás, é a de ter personagens e criadores que reflitam o mundo atual. Como prova, a companhia lançou uma Ms. Marvel muçulmana, um Capitão América Negro, um Hulk de ascendência coreana e uma Thor mulher, entre outros heróis diversificados.
Mas tanto Alonso, que tem ascendência mexicana, quanto Gay, que é negra, compreendem de onde vem a impaciência dos fãs. “Em geral, as pessoas não brancas têm representação desproporcionalmente pequena em qualquer forma de arte narrativa”, disse Gay. Também existe uma frustração, no momento em que as mudanças começam, “quando você vê apenas um filete de mudança, quando o necessário seria uma enxurrada”.
Coates, veterano fã de quadrinhos, disse estar consciente dos argumentos sobre a questão do gênero nos quadrinhos. “Precisamos abrir a porta”, ele disse. “Não é uma situação do tipo ‘seria bacana termos mais mulheres escrevendo, mais mulheres criando’, quadrinhos, e sim, de muitas formas, um imperativo”.
Ele recorda um editor da Marvel que foi questionado sobre a adoção de um uniforme mais militarista para a Capitã Marvel, que no passado usava uma roupa bem mais reveladora. O editor respondeu que queria que sua filha pudesse usar uma fantasia de Capitã Marvel no Halloween. “A ideia é que o mundo dos quadrinhos, o universo da Marvel, seja tão aberto para a filha dele quanto o é para o meu filho”, disse Coates. “Acredito que isso seja muito importante”.
George Gene Gustines
Acesse o PDF: Marvel escala autora feminista para HQ sobre heroínas lésbicas e negras (Folha de S.Paulo, 04/08/2016)