Aos 30 anos, a curitibana Ananda Puchta conquistou um feito e tanto na sua ainda curta carreira de advogada: falou na tribuna do Supremo Tribunal Federal (STF). Em sua sustentação, feita em fevereiro, defendeu a criminalização da LGBTIfobia no julgamento dos processos que pediam que a homofobia e a transfobia fossem equiparadas ao crime de racismo. A tese foi aceita pela maioria do Supremo em junho.
Mas o histórico de Ananda na defesa dos direitos das minorias já vem de antes. Ainda na faculdade, entre 2009 e 2013, iniciou sua atuação pro-bono, auxiliando nos processos de retificação de pré-nome e gênero de pessoas trans, quando isso só podia ser feito pela via judicial — desde o ano passado, também por decisão do STF, a alteração pode ser feita em qualquer cartório, sem a necessidade de laudo psicológico ou comprovação de cirurgia.
Na mesma época, “saiu do armário” e apresentou a sua companheira, com quem vive até hoje, para família. O processo, segundo a advogada, não foi fácil. Nascida e criada em Curitiba, no Paraná, hoje, além de atuar no Grupo Dignidade e na Aliança Nacional LGBTI, ela também preside a Comissão de Diversidade da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do estado e é uma das fundadoras do Coletivo Cássia, fundado em 2017 por mulheres lésbicas.
Em conversa com CELINA no Mês da Visibilidade Lésbica, Ananda falou sobre como a letra L acaba invisibilizada dentro do próprio movimentoLGBTI+ e também no movimento feminista. Para ela, o apagamento das vivências de mulheres que amam mulheres tem um impacto negativo sobre a saúde mental de jovens lésbicas e bissexuais. Uma das soluções, para a advogada, está na criação de redes de apoio e acolhimento para esses mulheres.
— É preciso mostrar que essa vida feliz é possível, que essa existência é possível — diz.
CELINA: Agosto é o mês da Visibilidade Lésbica. Você sente que as lésbicas, em geral, são invisibilizadas? Isso acontece dentro do movimento LGBTi+?
Ananda Puchta: Dentro no movimento LGBT, as mulheres lésbicas nunca tiveram um protagonismo de fato, apesar de estarem historicamente ativas. Temos várias mulheres lésbicas muito fodas nos últimos 30 anos no Brasil, mas os homens sempre aparecem como protagonistas, justamente porque é um espaço que estão acostumados a ocupar. Eles são ensinados desde cedo que ocupam esse espaço, e a gente é ensinada desde cedo que a nossa atuação é outra, é a do apoio, do cuidado. E isso tudo, para mim, tem origem no machismo. Isso vem mudando. A letra L, a partir de uma decisão da primeira conferência nacional do movimento [em 2008], passa a iniciar a sigla LGBT. Mas ainda tem muito preconceito com esse nome. Tem muitas mulheres lésbicas que falam que são gays, não lésbicas. Há uma dificuldade de falar que é lésbica. A gente se encontra nesse limbo entre o movimento feminista, que também não aceita as lésbicas muito bem, e o movimento LGBT, porque tem uma herança muito machista.
Como esse apagamento se manifesta dentro do movimento feminista?
Nos encontros das mulheres feministas , você raramente tem mesas que debatem a vivência de relacionamentos lésbicos ou bissexuais. Isso vem mudando, mas é complicado afirmar que as lésbicas são realmente aceitas no movimento feminista, porque não são. Existem muitos estereótipos ainda. Algumas mulheres ainda se colocam num papel machista nas relações. E não tem a ver com vestimentas ou performar masculinidade, mas de ter relacionamentos abusivos, comportamentos de ciúmes e de fiscalização dos corpos das suas companheiras. E isso são coisas que os homens fazem. É uma auto desconstrução que o movimento lésbico precisa fazer. Mas você tem dificuldade de debater questões de saúde, questões de políticas públicas específicas. Tem uma dificuldade de pautar isso dentro do movimento feminista, justamente porque você tem mulheres lésbicas nesse papel machista e é muito difícil para as feministas debaterem essa realidade. É óbvio que você tem espaços e instituições em que esse debate acontece e que agregam as lésbicas. No movimento LGBT também. Mas, em geral, há um apagamento muito grande.
“Fiz uma defesa não tão jurídica, mais social e histórica, falando pelas pessoas que já não estão mais aqui. Não tinha porque eu estar ali senão por eles, por essas pessoas que morreram por LGBTIfobia” ANANDA PUCHTA, Advogada – sobre a defesa da criminalização da LGBTIfobia no STF
Na prática, quais são os efeitos dessa invisibilização para as mulheres lésbicas?
A falta de conhecimento e a falta de acolhimento. Se você pega uma menina ou uma mulher lésbica que está saindo do armário no interior, por exemplo. Ela não tem muito acesso a conteúdo, ela não tem acesso a espaços onde possa conviver com outras mulheres lésbicas, onde possa debater a sua própria sexualidade. Porque não é simplesmente sair do armário, é um processo, uma descoberta. Tem várias questões psicológicas que acontecem e a falta desse acolhimento é muito nociva, principalmente para saúde mental dessas mulheres. Também rola a falta de convívio social. Muitas delas não têm círculo de amigos, não conseguem sair da bolha de dentro de casa, com a sua companheira, porque têm medo. A criação de uma rede é importante para que essas mulheres saibam o que fazer quando sofrem uma violência, onde procurar ajuda se estão em um relacionamento abusivo ou se estão tendo algum problema com a família. É informação, mas também apoio. Essa lacuna que o coletivo Cássia tenta suprir. Porque, na prática, na capilaridade, você tem muitas mulheres que sofrem todos os dias por causa da sua sexualidade, não só no mercado de trabalho, mas nas suas relações pessoais, na família, no círculo de amigos.
Além da visibilidade, você também fala que falta representação política e faltam modelos de mulheres lésbicas em diferentes espaços. Como isso se manifesta?
Isso vem mudando bastante nos últimos anos, com algumas atrizes globais saindo do armário. Você tem a Nanda Costa, a Bruna Linzmeyer, a Maria Maya. Alguns modelos de mulheres que não são estereotipados como “caminhoneiras”. Elas se colocam como mulheres lésbicas e mostram a sua competência de trabalho. Assim, as mulheres lésbicas começam a ver que não estão sozinhas e que existe a possibilidade de ser bem sucedida e ter uma vida feliz e aceitável por conta desses modelos. A própria vereadora Marielle Franco , por exemplo. Ela levantava mais a pauta racial, feminista e da segurança pública, mas também LGBT pela vivência dela. Ela era uma mulher casada com outra mulher. O fato dessa atrocidade ter acontecido no ano passado trouxe bastante visibilidade política para as vivências das mulheres pretas, periféricas e lésbicas. Mas as sementes que nascem dessa dor são muito interessantes. A gente tem uma proximidade muito grande com a Mônica Benício, que é a viúva da Marielle. E essas representações políticas importam. É preciso mostrar para as mulheres que têm algum medo de se afirmar ou de se colocar profissionalmente por sua orientação sexual que está tudo bem, que esse momento passa, mas é um momento pelo qual você precisa passar, de autoaceitação e de reconfiguração dos círculos afetivos, porque muitas vezes os círculos familiares são nocivos. É preciso mostrar que essa vida feliz é possível, que essa existência é possível. As mulheres estão tendo menos medo de se colocar enquanto mulheres lésbicas e isso é muito importante, porque a gente precisa desses modelos para fazer uma mudança de cultura, para a sociedade entender que somos mulheres como todas as outras, a única diferença é que amamos mulheres. Isso também inclui as mulheres trans lésbicas, as mulheres bissexuais.Na tua experiência pessoal, têm algum episódio marcante em que sentiu preconceito por ser lésbica?Eu me assumi na faculdade, bem cedo, mas era muito difícil não ser estigmatizada. “Lá vai a sapatão”, eu ouvia. Hoje em dia eu volto a universidade para dar palestras e vejo que é um ambiente mais tranquilo. Na minha época, era mais difícil de se colocar. E isso muitas vezes me atrelava a uma posição política que eu não tenho. Me chamavam de ‘lésbica comunista’ e eu não sou. Eu sou uma pessoa de centro. No meu estágio no Ministério Público isso foi mais latente, o ambiente era muito nocivo. O primeiro escritório em que trabalhei foi super acolhedor. Eu decidi seguir carreira autônoma para fazer a minha atuação pro-bono, mas também para não ter que me justificar para ninguém, não ter que sair do armário no ambiente de trabalho. Na advocacia em geral, você ainda tem que ter certos estereótipos de performance para ser aceito.“As mulheres estão tendo menos medo de se colocar enquanto mulheres lésbicas e isso é muito importante, porque a gente precisa desses modelos para fazer uma mudança de cultura” ANANDA PUCHTA, Advogada
E na sua família? Houve resistência ou foi mais tranquilo?Eu cheguei para minha família já apresentando a minha companheira. Meu pai ficou preocupado, porque achava que eu não poderia ter uma vida confortável, por sermos duas mulheres, e tinha medo da violência na rua. Eu não performo tanto a masculinidade, até por conta da profissão, e a minha companheira também não. A gente não sofre tanta discriminação na família por conta disso. Mas um fato curioso é que eu tenho um irmão gay e a minha mãe não trata as duas vivências da mesma forma.Tem um incômodo maior com o fato de eu ser lésbica do que com o fato do meu irmão ser gay. Sei que é uma questão histórica, que as mulheres mais velhas têm essa dificuldade. É um machismo velado, na verdade, e mudar isso é difícil, é uma desconstrução diária. Foi difícil para ela. Ela dizia que eu podia casar com o homem que eu quisesse, que eu não vou ter filho biológico, que tinha outros planos para mim. Com o tempo as coisas foram se alinhando, hoje a gente convive cordialmente e se respeita.