(BBC Brasil, 09/04/2015) O paranaense Toni Reis e seu marido, o inglês David Harrad, estão acostumados a estar na linha de frente da luta pelos direitos LGBT no Brasil.
Em 2005, com base em um pedido feito por eles, o Conselho Nacional de Imigração concedeu pela primeira vez a um estrangeiro o direito de permanecer no país por ter uma união com um brasileiro do mesmo sexo. Seis anos mais tarde, eles foram o primeiro casal gay do Paraná – e um dos primeiros do Brasil – a ter a união estável reconhecida em cartório.
Agora, os dois novamente abrem um precedente. No fim de março, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu de forma inédita, em uma ação movida por Reis e Harrad, o direito de adoção por casais homossexuais.
Esta questão ainda não é tratada especificamente em lei no país e depende da avaliação individual de cada juiz à frente de casos de adoção. Agora, a posição do STF poderá orientar o julgamento de outros processos semelhantes, apesar de não ter de ser obrigatoriamente seguida por juízes de instâncias inferiores.
No depoimento a seguir à BBC Brasil, Reis, que é ex-presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais e fundador da ONG Dignidade, avalia a importância desta decisão e comenta sobre o processo de dez anos até ela.
“No dia 20 de março, estava com meu marido em casa quando recebemos um email de nossa advogada. David leu a mensagem, começou a chorar e disse: ‘Vencemos’. O Supremo Tribunal Federal havia decidido que casais gays devem ser reconhecidos como família e que, portanto, têm direito à adoção. Acabamos comemorando em dose dupla, pois no dia seguinte celebraríamos nossas bodas de prata (25 anos de união).
Achávamos que íamos ganhar a causa, mas é como diz o ditado: a Justiça tarda. Levou dez anos, mas tivemos a decisão a nosso favor. Assim que soubemos, chamamos nossos três filhos e explicamos que agora somos não só uma família de fato, mas também por direito. É muito gratificante finalmente ter a proteção da Justiça. Faz você acreditar no país e nas instituições. Acaba não sendo uma vitória só nossa, porque reflete no coletivo. Foi uma vitória da cidadania.
Começamos a pensar em adotar no ano 2000. Era uma vontade de ambos, mas ficávamos inseguros, como acontece com qualquer pessoa quando uma decisão envolve a vida de outra. Ficávamos nos questionando se teríamos capacidade de educar. Se não estávamos sendo egoístas, porque esta criança poderia sofrer discriminação na escola.
Levamos cinco anos para amadurecer a ideia e, neste período, li mais de 20 livros sobre o assunto. Um deles questionava: ‘Qual criança não é discriminada na escola?’. Elas ganham apelidos por serem muito magras ou gordas, por ter cabelo comprido ou espinha no rosto. Criamos coragem e decidimos seguir em frente.
Em 2005, fomos o primeiro casal gay em Curitiba a dar entrada na documentação necessária para adoção. Passamos por entrevistas com psicólogas e assistentes sociais. Fomos a palestras sobre o que é ser pai. Assistimos a depoimentos em que casais explicavam os problemas que poderíamos enfrentar. Então, veio o parecer do juiz aprovando a adoção. Foi uma alegria.
Mas, ao fim de 14 páginas, na última linha, havia a condição de que a criança deveria ser menina e ter mais de 10 anos. Achamos estranho, pensando: ‘Será que é preconceito? Pensam que vamos abusar se for menino?’. Queríamos adotar uma criança do sexo e com a idade que desejássemos. Não seria uma imposição do Judiciário que determinaria isso.
Recorremos ao Tribunal de Justiça do Paraná, que concordou com a gente por unanimidade. Mas uma promotora estadual entrou com um recurso em que dizia que não constituímos família e que, por isso, não poderíamos adotar em conjunto.
Neste momento, ainda não havia nenhuma criança envolvida no processo, pois uma pessoa ou casal só pode dar início aos procedimentos para adoção de uma criança específica depois de ser aprovado por um juiz.
Diante deste impasse no nosso processo, estávamos impedidos de adotar no Paraná. Mas não em outros estados, já que não havia uma lei no país tratando especificamente da adoção por casais gays. Com isso, a decisão em cada caso varia de acordo com a avaliação desta questão pelo juiz à frente do processo.
Tanto que, neste meio tempo, em 2010, uma juíza da vara da infância e da juventude do Rio de Janeiro favorável à adoção por casais gays nos conheceu e comentou com nossa advogada que tinha uma criança para adotarmos: um menino bacana de 10 anos, negro e que gostava muito de falar inglês. Fomos ao Rio conhecer Alysson.
A princípio, ele não queria ir ao nosso encontro. Dizia ter ‘nojo de gays’. Tivemos uma conversa para explicar que somos gays. Ele disse que éramos ‘gente boa’, mas que gays ‘eram ruins’. Depois, entendemos que ele aprendeu isso nos abrigos por onde passou, onde diziam que gays eram pecadores e pedófilos, algo ‘do demônio’, que estupravam criancinhas e que eram pessoas más com ‘sentimentos imundos’.
Ficamos encantados com Alysson já no primeiro encontro. Perguntamos o que ele queria ser: ‘Quero ser médico’. Hoje, ele diz ter respondido isso porque ‘todo pai quer um filho médico’, mas que na verdade quer ser dançarino ou coreógrafo.
Conseguimos a guarda definitiva de Alysson em 2012. Depois dele, já entramos com o pedido de adoção de mais duas crianças. Queríamos uma menina e fomos conhecer a Jéssica. Ela tinha um irmão. Ao nos conhecer, Felipe pulou no nosso colo e disse: ‘Quero um pai, pode até ser gay, não tem problema’. Há um ano, temos a guarda provisória dos dois.
Hoje, estamos todos muito felizes e garantidos por lei como uma família. Dedicamos 24 horas por dia, sete dias por semana a eles. Fico pensando como um abrigo, por melhor que seja, pode atender bem tantas crianças. É como Alysson disse certa vez: ‘Ninguém merece a Prefeitura como mãe e o Governo como pai’.
Quando Alysson chegou para nós, a psicóloga já havia avisado que poderia não ser heterossexual. Hoje, meu filho tem 14 anos é muito bem resolvido com esta questão. Diz que se apaixona por pessoas e já me contou que tem atração por meninos e meninas. Não me importo se pensarem que ele será gay por nossa influência. Nunca valorizei isso nem disse a ele que ser homossexual é maravilhoso, porque é algo difícil em uma sociedade preconceituosa.
Da mesma forma que não valorizei quando o Felipe disse ser heterossexual. Ele falou para mim certo dia: ‘Pai, tenho uma coisa para te contar. Adoro mulher. Sou hétero. Vai ter problema?’. Disse que só queria que tivesse caráter, fizesse faculdade, tivesse uma especialização e estudasse uma língua. A orientação sexual e identidade de gênero é uma questão particular deles.
Sei que coloco uma bandeira no meu rosto, mas faço isso com tranquilidade. Quando uma pessoa tem claro que ela é cidadã como qualquer outra, precisa lutar. Tivemos vitórias importantes ao longo destes anos, como quando o David teve seu direito a permanecer no país reconhecido por estar comigo. A principal veio em 2011, quando o STF decidiu a favor da união civil entre homossexuais. No dia anterior, achava que ganharíamos por sete votos a três. Acabou sendo unânime. Foi fantástico.
Sofri demais até os 21 anos de idade e não desejo isso nem a meu pior inimigo. Fui tratado como doente pela família, como pecador pela minha igreja e como um anormal pela sociedade. Minha mãe me levou ao médico, ao pastor, ao padre e a um pai de santo para me curar. Fiz de tudo para me livrar deste sentimento. Hoje, ser um ativista é uma forma de autoanálise. A vida me deu um limão e, com ele, fiz uma caipirinha com adoçante.
Aristóteles diz que a finalidade da vida é ser feliz. Então, vou marchar pela minha felicidade, sem dar ouvido aos fundamentalistas. Fui perseguido por um homem por e-mail e nas redes sociais durante dois anos. Dizia que ia me matar porque eu estava ameaçando a família brasileira.
Ainda vou lutar mais. Quero ver a homofobia criminalizada. Não desejo ver ninguém morto ou expulso de casa por causa da sexualidade. Espero que daqui a 20 anos falemos: ‘Naquele tempo, as pessoas tinham um problema com isso’. Temos que deixar este mundo melhor. Estamos fazendo nossa parte.
Sei que estamos num período de trevas no Congresso Nacional em que fundamentalistas querem nos quitar direitos por meio do Estatuto da Família que está sendo avaliado por uma comissão da Câmara dos Deputados. Quando ouço o discurso de alguns políticos contra homossexuais, penso: ‘Eles têm de ler mais livros’. Tenho medo de pessoas de um livro só. Fui criado na Igreja Católica e respeito muito a Bíblia, mas ela não deve ser privatizada por um setor da sociedade.
Na verdade, estes fundamentalistas estão correndo atrás do prejuízo, porque ganhamos todas na Justiça nos últimos 15 anos. Mas não acredito em retrocesso. Estes políticos defendem estas visões para conquistar o voto conservador. Mas, hoje, as instituições são sólidas. O STF não está nem aí para a bancada evangélica. Podem fazer procissão na frente da corte que sua posição não vai mudar.
De agora em diante, ninguém neste país pode apontar o dedo para nós e dizer que não somos uma família. Independentemente de qualquer opinião, é o que diz a Justiça. É melhor aceitar que dói menos.”
Rafael Barifouse
Acesse no site de origem: ‘Ninguém mais pode dizer que não somos uma família’ (BBC Brasil, 09/04/2015)