Não é doença. Fim do estigma e ampliação do acesso à saúde é o que esperam ativistas e especialistas
(HuffPost Brasil, 23/06/2018 – acesse no site de origem)
“O maior ganho dessa decisão é a nossa dignidade”. É com essa afirmação que o ativista Leonardo Tenório, 28 anos, coordenador da Associação de Homens Trans & Transmasculinidades (AHTM), comemora o anúncio da Organização Mundial da Saúde (OMS) feito no início da semana, que confirmou a retirada da transexualidade da lista de transtornos mentais da Classificação Internacional de Doenças (CID).
Na décima primeira atualização da CID, a OMS reconhece a luta de Tenório e de tantas outras pessoas trans pela despatologização de suas identidades, e deixa de considerar a transexualidade uma doença. Até então ela era classificada como “transtorno de identidade de gênero”, e agora passa a integrar um novo capítulo na CID-11, intitulado “condições relacionadas à saúde sexual”, como “incongruência de gênero”.
“Precisamos entender que o código internacional de doenças não fala só de doenças, fala de condições de saúde que demandam atenção de profissionais de saúde.”
No catálogo, a chamada “incongruência de gênero” é entendida como “incongruência acentuada e persistente entre o gênero experimentado pelo indivíduo e àquele atribuído em seu nascimento”. “A lógica é que, enquanto as evidências são claras de que [a transexualidade] não é um transtorno mental, de fato pode causar enorme estigma para as pessoas que são transexuais e, por isso, ainda existem necessidades significativas de cuidados de saúde que podem ser melhores se a condição for codificada sob a CID”, justifica a OMS em nota publicada no site oficial.
A decisão de manter a transexualidade na CID, não mais como uma doença, mas como uma condição relacionada à saúde sexual, é vista como positiva por ativistas e especialistas. Isso porque reforça que a pessoa trans não é doente, mas requer atenção por parte das entidades sanitárias e de profissionais da saúde. “A gravidez também está na CID. E é preciso que esteja para que gere procedimentos médicos. Agora a gente precisa entender a transexualidade como entende a gravidez: uma condição do indivíduo que precisa de acompanhamento médico, nesse caso para os próprios procedimentos de readequação, como a cirurgia e a hormonioterapia”, explica Pedro Paulo Bicalho, diretor-secretário do Conselho Federal de Psicologia (CFP). “Precisamos entender que o código internacional de doenças não fala só de doenças, fala de condições de saúde que demandam atenção de profissionais de saúde”, completa.
“Quando a OMS se posiciona, gera um efeito de jurisprudência, que tem uma força política muito grande.”
Ele explica que a decisão da OMS sobre a transexualidade acompanha os avanços e as compreensões científicas da área, inclusive da própria psicologia. Ele se refere a resolução nº 1 de 2018 do CFP, que, desde janeiro, proíbe psicólogos de tratar a transexualidade e a travestilidade como uma doença e impede os profissionais de praticar qualquer ação que favoreça preconceitos, como terapias de conversão, reversão, readequação ou reorientação de identidade de gênero.
“Não reconhecemos o caráter patológico da transexualidade assim como afirmamos que a transfobia não é algo possível no exercício da profissão dos psicólogos”, afirma. “Quando a OMS se posiciona, gera um efeito de jurisprudência, que tem uma força política muito grande. A própria resolução do CFP tem maior respaldo”, completa.
A expectativa é que agora o Conselho Federal de Medicina (CFM) também altere a resolução que trata da transexualidade e acompanhe o movimento da OMS pela despatologização. A última atualização da resolução do conselho é de 2010 e ainda define a pessoa trans como portadora de “de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou autoextermínio”. O resolução também determina que a realização da cirurgia de readequação sexual, oferecida no Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2008, só pode ser feita em pacientes diagnosticados por um equipe composta por psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social após um acompanhamento de pelo menos dois anos.
“Não dá para um homem ou uma mulher trans chegar hoje no serviço de saúde e marcar uma cirurgia amanhã, isso nunca vai acontecer.”
Tenório espera que a decisão da OMS reduza esse tempo de acompanhamento e dispense o diagnóstico psiquiátrico. “A burocracia de um diagnóstico da nossa identidade trans, que não é uma patologia, é apenas uma forma de ser humano na sociedade, acaba criando uma série de regras que fazem com que a gente não tenha acesso aos procedimentos de saúde”, afirma. Para ele, essas regras não condizem com a experiência da transexualidade na vida real.
“Não dá para um homem ou uma mulher trans chegar hoje no serviço de saúde e marcar uma cirurgia amanhã, isso nunca vai acontecer. Mas a gente também não tem essa incapacidade de em alguns meses ou em menos de dois anos dizer quem a gente é o que a gente quer ter no corpo e o que não quer ter”, explica. “Agora quem vai decidir sobre a gente é a gente mesmo”, completa.
Para Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, a decisão da OMS deve qualificar os procedimentos de atenção à saúde de pessoas trans, mas o diagnóstico psiquiátrico deve continuar sendo exigido no processo de readequação sexual mesmo após a atualização da resolução do CFM. “A população transexual busca a medicina para as mudanças corporais e isso só pode ser realizado no sistema público de saúde frente a um diagnóstico, deixando claro que diagnóstico não é sinônimo de doença”, explica.
Em nota, o CFM afirmou que “com a ajuda de técnicos e especialistas, tem se dedicado à análise deste e outros temas de interesse para a medicina e a sociedade”, mas que “até o momento, não há qualquer deliberação sobre esse assunto específico”.
A espera pela cirurgia de readequação sexual pode levar mais de 20 anos, e apenas uma parcela da população trans com interesse é atendida. “O que a gente espera com a decisão da OMS é que os procedimentos de atenção à saúde de pessoas travestis e transexuais que já existem possam ser potencializados. Promover a saúde dessa população, que não está doente, é algo extremamente necessário”, afirma Bicalho, do CFP.
Só o começo
“É apenas o início de tudo”, afirma Keila Simpson, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) em entrevista à Agência Brasil. Ela acredita que a decisão traz uma quebra paradigmas e pode abrir espaço para mais transformações que vão dar força para as políticas para diversidade, mas não leva a superação imediata de violências e preconceitos sofridos pelas pessoas trans.
“A transexualidade ainda é reconhecida como uma situação que gera menos acesso a direitos, iniquidades, uma exposição absurda à violência. O Brasil é o país que mais assassina transexuais. Para que o nível de violência contra essa população diminua, não basta o reconhecimento da OMS, mas é necessário que toda a população reconheça que se trata apenas de um variação da forma de se viver o gênero e não há nenhuma patologia em relação a isso”, reforça Bicalho.
Leda Antunes