A censura à exposição patrocinada pelo banco Santander e a violência contra a comunidade LGBT são gumes de uma mesma faca
(CartaCapital, 13/09/2017 – acesse no site de origem)
Nelson Mandela nos advertia em meados da década de 1990 que o ódio é algo aprendido. Eis uma de suas célebres frases: “Ninguém nasce odiando outro pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”. Às suas palavras devemos acrescentar que ninguém nasce odiando outro por sua identidade de gênero ou sua orientação sexual.
O ensinamento de Mandela, contudo, permanece inacessível a uma humanidade incapaz de evoluir coletivamente e superar tragédias históricas como aquela do apartheid na África do Sul ou do regime nazista na Alemanha. O ódio segue um ensinamento contumaz.
Mudar a chave deste aprendizado nefasto não tem se mostrado fácil. Em nossa limitada existência particular, não somos capazes de enxergar a olho nu os mecanismos e processos pelos quais se aprende a odiar. Invisível aos nossos olhos, o ódio é plantado nos corações humanos de maneira sutil, gradativa e dissimulada, o que o torna extremamente difícil percebê-lo.
Só nos damos conta do desenvolvimento do ódio quando ele está demasiadamente arraigado nos corações de pupilos convictos de que a afirmação de sua existência só é possível com a anulação simbólica ou concreta da existência alheia.
Vemos o ódio brotar dos argumentos e ações de uma legião de convictos em uma única verdade, um único modo de ser e estar no mundo, “determinado” por um ser superior ao qual acreditam servir e honrar ao negar a diversidade humana. Não vemos nascer o ódio, mas sabemos que ele nasce da negação de uma existência diferente ao seu semblante narcisístico diante do espelho.
A este respeito Luis Antônio Baptista dos Santos, às vésperas do irrompimento do novo milênio, nos fazia refletir sobre os discursos que nutrem os crimes de ódio, ao que ele denomina de amoladores de faca.
Dizia ele: “O fio da faca que esquarteja, ou o tiro certeiro nos olhos, possui alguns aliados, agentes sem rostos que preparam o solo para esses sinistros atos. Sem cara ou personalidade, podem ser encontrados em discursos, textos, falas, modos de viver, modos de pensar que circulam entre famílias, jornalistas, prefeitos, artistas, padres, psicanalistas etc.”
No Brasil do século XXI, lugar onde mais se mata trans no mundo, o fundamentalismo religioso assume evidentes contornos de esmeril no (des) serviço de amolar as facas contra a população LGBT, as religiões de matriz africana e a autonomia sexual e reprodutiva das mulheres.
O fundamentalismo é responsável por amolar as facas de tragédias cotidianas que vitimizam Dandaras, Luanas, Danielles, Lilis e tantas outras a quem só se reconhece como “travesti”, mulheres cuja existência é negada, subtraída, dizimada.
Esse mesmo fundamentalismo foi responsável por amolar as facas que censuraram a exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, em Porto Alegre, encerrada precocemente devido a protestos que alegavam conteúdo ofensivo e desrespeitoso contra símbolos religiosos. Movimentos de caráter conservador fizeram uso de um discurso religioso fundamentalista para mobilizar sentimentos educados pelo ódio em torno de seus interesses políticos e econômicos.
O Santander Cultural reage frente a única gramática que reconhece e lhe interessa: a econômica. Com ela, imprime seu poder e garante sua imunidade, as facas direcionadas momentaneamente a ele estão cegas e pouco se prestam a sangrá-lo de fato. O golpe desferido contra a exposição artística tem como alvo o direito de toda a população LGBT de representar o mundo, de ser representada, visibilizada, reconhecida. É uma faca amolada contra sua existência.
A mostra que buscava evidenciar questões relativas ao gênero, diversidade e práticas sexuais foi destroçada em seu propósito pelos discursos de ódio que a associaram levianamente à promiscuidade, pedofilia e zoofilia.
A censura de uma exposição artística e os crimes de ódio são, pois, gumes de uma mesma faca cuidadosamente afiada pelo discurso fundamentalista religioso que reivindica em torno de si a autoridade moral para definir desde o que é arte a quem deve ou não existir.
As gritas em torno de símbolos religiosos dos quais se julgam proprietários é tão desprovida de sentido quanto esvaziar um pote de água para poder carregá-lo deserto afora. Esvaziado de sua substância, o símbolo religioso não tem sentido algum. Cultivar o ódio justificado por uma crença religiosa é da mesma forma jogar fora a substância para carregar seu receptáculo completamente vazio.
Onde nasce o ódio é preciso ensinar o amor. Este sentimento que, como nos ensinou Jesus Cristo, é radical e exigente, que nos impulsiona ao pensar e fazer coletivos, nos move no sentido de desenvolver conjuntamente nossa força criativa e transformadora. A humanidade, contudo, ainda não foi foi capaz de entender o valor da diversidade e de amá-la como a si mesma. Oxalá ainda nos dê tempo de aprender e ensinar a amar como acreditava Mandela.
Gisele Pereira, historiadora e cientista da religião, professora do Ensino Básico; integrante da equipe de coordenação de Católicas pelo Direito de Decidir. Escreve às quartas-feiras