Pedido de Obama para eliminar restrição à doação de sangue por gays reforça debate no Brasil

19 de maio, 2015

(O Globo, 19/05/2015) Grupos criticam critérios que proíbem homossexual em relação estável de doar

Bancos de sangue brasileiros chegam a armazenar milhões de bolsas por ano. Com elas, guardam uma controvérsia: restrições a doadores considerados “inaptos”. Entre eles, estão homens que tiveram relações sexuais recentes com outros homens, pessoas com parceiros ocasionais e quem já tenha usado drogas injetáveis ilícitas, ainda que no passado. Críticas de ativistas e de candidatos a doação recusados voltam a circular com a emergência do assunto em outros países. Nos Estados Unidos, o governo do presidente Barack Obama recomendou, na semana passada, o fim do veto vitalício para homens gays e bissexuais vigente no país. Por sua vez, o Tribunal de Justiça da União Europeia, no mês passado, entendeu que os países do bloco podem impedir que homossexuais doem sangue.

Para os que reprovam as atuais regras brasileiras, as condições impostas aos doadores aumentam o estigma sobre grupos já marginalizados. Entre as principais razões citadas por médicos para as restrições está a preocupação em reduzir, ao máximo, os riscos àqueles que receberão transfusões. Segundo o Boletim Epidemiológico HIV/Aids de 2014, publicado pelo Ministério da Saúde, a taxa de prevalência de HIV entre homens que fazem sexo com homens é de 10,5%; entre usuários de drogas, de 5,9%; e entre mulheres profissionais do sexo, de 4,9%. Na população brasileira em geral, a taxa é notadamente mais baixa, de 0,4%.

A JANELA IMUNOLÓGICA

Todo sangue doado passa por exames para identificação das hepatites B e C, doença de Chagas, sífilis, HTLV e Aids. Um dos argumentos para limitar determinados grupos de doar é a chamada janela imunológica, o intervalo de tempo que o organismo demora para fabricar anticorpos contra o HIV, permitindo a identificação do contágio em exame. Segundo o Ministério da Saúde, o período pode variar de acordo com o tipo de teste, mas, na maioria dos casos, é constatado de 30 a 60 dias após a exposição ao vírus. Se um teste de HIV é feito durante o período da janela imunológica, há a possibilidade de apresentar um falso resultado negativo.

Críticos das regras, porém, questionam o fato de outros critérios, como uso de preservativos e realização de exames periódicos, não serem levados em conta.

— Ser homossexual não significa ter uma doença. Além de frustrado, me senti discriminado — desabafa o empresário Marcos Passos, de 32 anos, ao lembrar o dia em que ouviu de um médico que não poderia doar sangue por ter tido relações sexuais com outro homem nos 12 meses anteriores. — Expliquei que estava em um relacionamento estável havia três anos. Ele ficou sem graça e disse que eram “ordens de cima”. Acho essa regra uma grande besteira, ela deveria ser revista.

Welton Trindade, diretor do Estruturação — Grupo LGBT de Brasília, faz coro:

— O direito à doação para gays e travestis é uma de nossas grandes bandeiras. Queremos igualdade, não privilégios. Se um gay fala que tem parceiro estável, por que não pode doar? Somos contra regras que categorizam as pessoas — critica Welton Trindade. O Estruturação conduziu por anos a campanha “Mesmo sangue. Mesmo direito”.

As regras a que o profissional de saúde que atendeu Passos em um hemocentro do Centro do Rio se referia estão estabelecidas numa portaria do Ministério da Saúde de junho de 2011. O documento determina que a orientação sexual não deve ser usada como critério para seleção de doadores de sangue, por não “constituir risco em si própria”. Afirma ainda que técnicos de unidades de saúde devem evitar manifestar preconceito por orientação sexual, identidade de gênero ou hábitos de vida. Mais à frente, contudo, o documento esclarece que são considerados “inaptos temporários” homens que, no último ano, tiveram relações sexuais com outros homens, pessoas que possuam histórico de encarceramento, que tenham feito sexo em troca de dinheiro ou com um ou mais parceiros ocasionais.

A jornalista X., de 25 anos, estava nesse último grupo quando foi recusada como doadora, também em um hemocentro carioca, há dois anos. Pelo médico, soube que o fator decisivo foi ter escrito “quatro”, em resposta à pergunta “Teve quantos (as) parceiros (as) sexuais de um ano para cá?” no formulário de triagem.

— Tentei argumentar, afirmando que usava preservativo e fazia exames regularmente, mas ele me disse que eu estava em um grupo de risco por ter excedido um certo número de parceiros — conta a jovem, que atualmente está namorando e prefere não ser identificada. — Acho que isso é preconceito e discriminação. Vemos tantas cadeiras de doação vazias ali e gente sem poder doar. Criam problema e estigma onde não existe. Espero que, em algum momento, isso mude.

Entre as questões presentes em formulários de hemocentros que tratam dos hábitos sexuais dos possíveis doadores, há perguntas como “Frequenta termas, casas de massagem?”, “Já recebeu dinheiro ou outro tipo de pagamento para fazer sexo com alguém?”, “Teve relação sexual com homem que já tenha feito sexo com outro homem?”.

Chefe do Serviço de Hemoterapia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, ligado à UFRJ, Carmen Nogueira, assegura que, quando se trata de normas para doação de sangue, o principal ponto é diminuir riscos para os receptores.

— O viés não é de preconceito. Tanto que não fazemos seleção por orientação sexual. Não é porque alguém é homossexual que não pode doar. É porque tem maior ou menor chance de ter sido exposto a um agente infeccioso — afirma, citando a janela imunológica. — Ao selecionar o doador, estamos buscando sangue de baixo risco de transmissão de qualquer patologia viral ou bacteriana. Procuramos os doadores com menor risco possível. Os exames que testam o sangue evoluem, mas não temos 100% de certeza de todas as coisas.

Em nota, o Ministério da Saúde reitera que as medidas adotadas têm como objetivo a qualidade do sangue doado. “O sangue é sempre retirado de uma pessoa para ser infundido numa outra que está numa situação bastante vulnerável, de bastante necessidade”, completa a pasta, acrescentando que, atualmente, existem 32 hemocentros coordenadores e 530 serviços de unidades coleta, hemocentros regionais e núcleos de hemoterapia no país. Por meio do Sistema Único de Saúde, foram doadas 3,4 milhões de bolsas de sangue no ano passado, quase o dobro número de 2013. Segundo relatos de médicos, porém, hemocentros brasileiros operam no limite.

Para o antropólogo Luiz Henrique Passador, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), há “componente moral” nas regras dos procedimentos hemoterápicos.

— A portaria adota a ideia de que não deve haver discriminação, mas não interfere na raiz do que faz com que ela exista. Um heterossexual que tenha parceiros ocasionais se equipara a um homem homossexual, mas um homem homossexual que tenha parceiro estável continua sendo descartado. Consciente ou inconscientemente, a regra acaba ajudando a reproduzir a ideia de que a monogamia protege as pessoas da epidemia, pensamento que não se mostrou real e que resultou em um aumento da infecção entre mulheres casadas — avalia o especialista em estudos de gênero e sexualidade, DST, HIV e Aids.

Já Alexandre Barbosa, professor de infectologia da Faculdade de Medicina Unesp em Botucatu (SP), é taxativo ao dizer que “pior que não ter sangue é ter sangue contaminado”:

— Num banco de sangue, você está tentando salvar vidas, não pode dar mais um problema para a pessoa. Por isso, trabalhamos com excesso de zelo.

Ele concorda, porém, que a regra que exclui homens gays com parceiros fixos pode ser “estigmatizante”.

Dandara Tinoco

Acesse o PDF: Pedido de Obama para eliminar restrição à doação de sangue por gays reforça debate no Brasil (O Globo, 19/05/2015)

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas