Corpo de Lourival está parado no IML há mais de 3 meses após ser identificado como “uma pessoa do sexo feminino”.
(HuffPost Brasil, 06/02/2019 – acesse no site de origem)
Um homem trans que morreu em outubro passado e cujo corpo está no Instituto Médico Legal (Imol) do Mato Grosso do Sul há mais de 3 meses por estar sendo tratado pelas autoridades locais como “uma pessoa do sexo feminino” deve ter sua identidade trans reconhecida, defendem especialistas.
O caso de Lourival Bezerra de Sá, que morreu aos 78 anos, foi revelado pelo programa Fantástico, da TV Globo, no último domingo (3).
Para especialistas ouvidos pelo HuffPost Brasil, considerar que Lourival não é um homem trans e acusá-lo de uma suposta falsidade ideológica pode ser entendido como um ato de falha institucional e passa a mensagem de que ser transexual é ser uma mentira.
Lourival foi vítima de um infarto fulminante. Ao chegar ao serviço de verificação de óbito, o médico legista identificou que ele tinha um corpo de mulher. A divergência de gênero e a falta de documentação estariam impedindo o enterro.
Amigos, vizinhos e até mesmo filhos adotivos entrevistados pelo programa disseram que não sabiam que Lourival era um homem trans. Segundo o Fantástico, foi encontrado apenas um CPF em nome de Lourival. Os demais documentos ele alegava ter perdido.
“Não é nem uma questão de falta de informação [de Lourival sobre o processo de mudança para o nome social]. Não havia nem a possibilidade da retificação do registro até pouco tempo”, afirma a doutora em psicologia social Jaqueline Gomes de Jesus.
Somente em março de 2018 o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o direito de pessoas trans retificarem seu registro civil sem necessidade de cirurgia de redesignação sexual, avaliação psicológica ou processo judicial.
“A pessoa viveu a vida inteira com uma identidade masculina. Para quem tem o mínimo de conhecimento sobre a existência de pessoas trans, é óbvio que ele era um homem trans. Ainda mais considerando a idade dele. Você entende que ele não tinha condições de buscar um reconhecimento civil”, explica a doutora em psicologia social Jaqueline Gomes de Jesus.
A delegada do caso, Christiane Grossi, afirmou também ao Fantástico que ele somente tomava banho com as portas do quarto e do banheiro trancadas, que usava faixas para esconder os seios e que nem mesmo a cuidadora, com quem ele vivia há mais de 40 anos, era autorizada a lhe dar banho.
Gomes de Jesus considera que há uma falha institucional que impede que Lourival tenha sua identidade reconhecida e que ele seja enterrado de maneira digna. “Pelo fato de não ter documentação, estão há meses com o corpo no IML. Há uma falha nas instituições para lidar com esse corpo”, avalia.
Para a pesquisadora, a própria decisão do STF pode ser usada pelas instituições policiais que cuidam do caso para reconhecer a verdadeira identidade de Lourival, para que ele possa finalmente ser enterrado.
“Ele sabia quem ele era. E vivia como tal, possivelmente sem muita teorização. Mas as instituições não aceitavam a existência dele”, afirma.
“Imagina uma pessoa trans, no interior, em um País em que a Justiça é cara. Era um senhor de 78 anos. Ele poderia até tentar fazer a retificação agora, mas criou toda uma vida não tendo que dizer isso para as pessoas, não tendo que expor a sua identidade de gênero”, completa.
Na época não havia como, não se discutia esse tema. Era tabu, tudo era visto como homossexualidade.
Alexandre Saadeh, do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero do Hospital das Clínicas da USP
O psiquiatra Alexandre Saadeh, que coordena o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero do Hospital das Clínicas da USP, rejeita a teoria de que Lourival “enganou” seus familiares e amigos.
“A mensagem que isso passa para a sociedade é que ser transexual é viver uma mentira. E não é. É uma necessidade da pessoa. É a verdade dela. Mentiroso é a gente forçar essa pessoa a viver de uma determinada maneira que não é a dela e que não tem nada a ver com a gente”, critica.
O médico avalia que, como Lourival já vivia sua identidade masculina há mais de 50 anos, fez a sua transição em uma época que não havia qualquer acompanhamento para a população transexual e preconceito. “Na época não havia como, não se discutia esse tema, era tabu, tudo era visto como homossexualidade”, afirma.
O especialista explica que esconder e ter dificuldade em exibir o corpo é algo comum à transexualidade. “Essa população não aceita as características do corpo que apresenta. Não querer ser visto, não querer ser tocado.”
Ele também aponta que o gênero de uma pessoa não tem relação com seu sexo biológico. “Quando a pessoa nasce, você reconhece o sexo de nascimento. O gênero – que é o que define a gente como homem ou mulher – você não pode determinar pelo sexo. Isso vai ser um desenvolvimento de cada pessoa.”
Organizações reagem após caso vir à público
O Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat) emitiu uma nota de repúdio ao tratamento dado a Lourival pela reportagem do Fantástico.
“Insistem em se referir ao sr. Lourival como alguém enganador e que necessitava de investigação para descobrir sua ‘real identidade’. A identidade dele já estava confirmada pela família que construiu com sua companheira e pelos filhos que teve”, diz o texto.
Para o instituto, a identidade trans de Lourival foi apagada quando sua morte foi noticiada. “Fortalecer uma investigação descabida à procura da ‘verdadeira identidade’ do sr. Lourival é procurar uma maneira ainda mais violenta e dolorosa de deslegitimar a identidade de gênero dele”, diz a nota.
Após a repercussão negativa nas redes sociais, a TV Globo veiculou, nesta segunda-feira (4) uma entrevista com o médico psiquiatra Daniel Mori, também do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero do Hospital das Clínicas de São Paulo, que explicou porque Lourival era um homem transgênero. Procurada, a TV Globo não se manifestou até a publicação desta reportagem.
Na noite da última terça-feira (5), a Aliança Nacional LGBTI+ emitiu um comunicado pedindo às autoridades competentes que a identidade de gênero de Lourival seja reconhecida após a sua morte.
“Lourival era um homem. A seu modo, nascido em novembro 1939, afirmou a todos, até mesmo pelos relatos colhidos pela reportagem, ser do gênero masculino. (…) O corpo de Lourival não pode ser instrumento de exposição da curiosidade social”, afirma a nota.