Rio Sem Homofobia e Casa da Mulher de Manguinhos suspendem serviços

16 de fevereiro, 2016

(O Globo, 16/02/2016) Programa LGBT é ligado à secretaria comandada por pastor evangélico

O letreiro do Rio Sem Homofobia e as cores do arco-íris continuavam na fachada do prédio da Central do Brasil. Mas, ao chegar ao sétimo andar do edifício, onde funciona a sede do programa estadual, um empresário de 36 anos encontrou a realidade de uma política jogada para escanteio, sem a visibilidade que já teve um dia. Expulso de um táxi durante o carnaval, após outro rapaz botar a cabeça em seu ombro para descansar, ao tentar denunciar o caso ele se deparou com um longo corredor desocupado, com apenas um gabinete aberto no fim de uma sequência de salas trancadas.

O motivo desse vazio tem a ver com uma polêmica e com a crise financeira do estado. Dois meses depois de o pastor Ezequiel Teixeira, do Partido da Mulher Brasileira (PMB), assumir a Secretaria estadual de Assistência Social e Direitos Humanos, o Rio Sem Homofobia, ligado à pasta, foi desmantelado. No começo de janeiro, mais de 60 funcionários do programa já tinham sido demitidos. Agora, os principais serviços foram suspensos. Sem pessoal, os quatro centros de Cidadania LGBT que prestavam atendimento psicológico, jurídico e social no Estado (um deles no prédio da Central) fecharam as portas. E o Disque Cidadania LGBT (canal por telefone para denúncias de agressão, por exemplo) parou de funcionar.

— Primeiro, tentei contato pelo 0800, mas ninguém atendia. Depois, pelo site do programa. Com a ajuda de uma equipe de TV, funcionários do Rio Sem Homofobia chegaram até mim. Fui atendido com muito profissionalismo e solidariedade. Mas, ao me deparar com as salas do centro trancadas, fiquei imaginando quantas pessoas poderiam não estar tendo a ajuda adequada — afirmou o empresário, que foi recebido pelo próprio coordenador do Rio Sem Homofobia, Claudio Nascimento, e por um advogado que trabalhava voluntariamente.

CONTRATO NÃO FOI RENOVADO

A secretaria alega a crise no Estado para explicar a paralisação dos serviços. Mas Nascimento afirma que nem o contingenciamento na pasta, de cerca de 30% dos recursos, justificaria a situação. Ano passado, diz ele, o Rio Sem Homofobia tinha 78 profissionais terceirizados e sete cargos nomeados. Os terceirizados, no entanto, não receberam os salários de setembro a dezembro, nem o 13º. E, desde o início de janeiro, não foi renovado um convênio com a Uerj, pelo qual eram feitos os pagamentos.

— Eu não tinha mais capacidade moral para pedir a permanência dos profissionais, pois não tínhamos sequer um calendário de previsão de pagamento. Mês passado, cerca de 20 pessoas se ofereceram para trabalhar nos centros de cidadania, e conseguimos manter o atendimento de casos de emergência. Agora, em fevereiro, esse número caiu para sete, oito pessoas — contou Nascimento. — Diante da crise, poderíamos entender até uma redução deles, mas não essa interrupção. Isso gera um prejuízo enorme. Não há razão para uma política LGBT existir se ela não está atendendo às demandas da população.

Nascimento lembra que o primeiro centro de cidadania (o da Central do Brasil) e o Disque Cidadania LGBT foram criados em julho de 2010 para acompanhar a investigação de crimes motivados por homofobia. Desde então, foram mais de 23 mil atendimentos por telefone, e cerca de 25 mil pessoas procuraram os quatro centros existentes (além do Rio, há postos em Duque de Caxias, Niterói e Friburgo). Os números não garantiram a manutenção dos serviços.

Por enquanto, Nascimento diz não ser possível associar a interrupção às convicções religiosas do secretário — ligado ao Projeto Nova Vida e que, ano passado, enquanto deputado federal, se posicionou contra ações do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoções dos Direitos LGBTTT, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Nascimento afirma até ter solicitado ao governador Luiz Fernando Pezão a mudança do programa para outra secretaria do Estado, segundo ele, por incompatibilidade política e ideológica entre o pastor Ezequiel e os objetivos do Rio Sem Homofobia.

— Nossa área é mais vulnerável diante de uma relação como essa. Mesmo se houver a renovação do contrato com a Uerj e a continuidade do programa, teremos, sim, do ponto de vista conceitual e estratégico, uma impossibilidade de trabalhar juntos. O secretário já se manifestou a favor da cura gay e se posiciona contra a adoção de crianças por casais homossexuais. O programa e eu representamos tudo ao contrário do que ele defende — diz Nascimento, lembrando que a cada dia um homossexual é assassinado no Brasil. — A continuidade desses serviços não é uma questão de luxo ou vaidade. É uma necessidade para garantir direitos básicos para as pessoas.

Apesar de a reportagem ter feito pedidos de entrevista com o pastor Ezequiel, a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos se manifestou apenas por nota. No texto, afirmou que “todos os esforços são para que a situação seja normalizada o mais breve possível”. Além disso, a assessoria de imprensa do órgão informou que outros dois serviços foram paralisados devido aos cortes: o da Casa de Direitos e o da Casa da Mulher de Manguinhos. O GLOBO já mostrou nos últimos meses que os atrasos dos repasses da secretaria provocam o temor de fechamento de outros três centros de atendimento à mulher, ligados à Subsecretaria de Políticas para as Mulheres. A crise também levou a mudanças no cardápio de restaurantes populares, onde refeições com carne viraram raridade.

No Rio Sem Homofobia, foi paralisado também um projeto de formação de policiais militares para que eles lidassem melhor com casos envolvendo a população LGBT. O último curso seria para mil PMs. Cerca de 500 policiais da Região dos Lagos se formaram. Mas as turmas de dezembro e janeiro tiveram de ser canceladas.

Nesse quadro, o orçamento para a Assistência Social em 2015 era de cerca de R$ 625 milhões. Desse valor, o Rio Sem Homofobia ficaria com R$ 2,4 milhões (pouco menos de 0,4% do total da secretaria). Mas o programa, segundo Nascimento, não recebeu nem o que estava previsto.

Embora já tivesse uma estrutura enxuta, o coordenador do trabalho lembra que, nos últimos anos, o Rio Sem Homofobia serviu de inspiração para projetos parecidos em cidades de outros estados do país. Ganhou também reconhecimento internacional, como o certificado de boas práticas em políticas públicas para LGBT, concedido pela União Europeia.

CRÍTICAS DE ATIVISTAS

A interrupção dos serviços gerou críticas de ativistas ligados às causas LGBT. Houve quem lembrasse que, no Rio, estão sendo repetidas as polêmicas geradas em Brasília, quando o pastor Marco Feliciano (PSC-SP) foi nomeado presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Presidente do Grupo Arco-Íris, Almir França lembrou que, no Rio, o modelo de atendimento do Rio Sem Homofobia serviu de base para programas como o Brasil Sem Homofobia. E, além de prestar apoio a vítimas de agressões física e verbal, por exemplo, representou um avanço ao acolher pessoas com HIV.

— Concretamente, era a única política pública efetiva que tínhamos no estado. É um retrocesso grande no que vem sendo trabalhado nas últimas duas décadas no estado. Isso nos leva a ter que voltar a um processo de ir às ruas de novo, não só para reivindicar, mas para pensar em novas soluções. Não dá para admitir movimentos fundamentalistas nos poderes estadual e federal. A gente entende que existe uma crise econômica.

Coordenador especial da Diversidade Sexual do município, Carlos Tufvesson também lamenta a situação do programa estadual.

— É grave a situação como um todo, mas especialmente para as cidades do estado que não têm um serviço de atendimento ao público LGBT. O fechamento desse serviço interrompe o contato direto de quem faz as políticas públicas com o cidadão fluminense. Esse contato é importante como termômetro, para verificação de ações que precisam ser desenvolvidas pelo estado — diz ele.

Para a historiadora e ativista Rita Colaço, a nomeação do pastor para a secretaria é o resultado de negociações políticas. Ela condena o fato de um político com posições tão marcadas assumir a pasta de direitos humanos:

— É catastrófico. Nesse caso, o estado laico se torna uma falácia, em nome de um arranjo político. Infelizmente, os homossexuais continuam sendo uma moeda de troca. Não venha dizer que é falta de dinheiro. Não é. Não tem dinheiro, mas empresta para empresas privadas cobrirem dívidas? E ainda mistura religião com assuntos de estado, inviabilizando uma das poucas políticas públicas para contornar a ausência de leis que garantam os direitos dos homossexuais.

Rafael Galdo

Acesse no site de origem: Rio Sem Homofobia suspende serviços e demite (O Globo, 16/02/2016)

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