Trans não vão a hospitais para evitar “explicar o que têm entre as pernas”

23 de fevereiro, 2016

(UOL, 23/02/2016) Depois de um acidente de esqui em janeiro no qual quebrou o joelho, Beck Bailey, um homem transgênero de Greenfield, Massachusetts, nos Estados Unidos, passou 15 dias em um hospital, em Vermont, sendo submetido a uma série de cirurgias. Como parte de sua rotina normal, Bailey toma doses regulares de testosterona, mas o endocrinologista responsável afirmou que os pacientes não devem tomar o hormônio durante o pós-operatório.

Bailey é um homem trans e vice-diretor de um grupo de defesa dos direitos LGBT

Bailey é um homem trans e vice-diretor de um grupo de defesa dos direitos LGBT (Foto: Kieran Kesner/The New York Times)

Bailey disse que não podia simplesmente interromper o tratamento. Mas os médicos foram tão incisivos que ele teve de pedir para que entrassem em contato com seu médico de cuidados primários, que explicou que ele deveria retomar o tratamento usual.

“Não espero que todos os médicos do mundo se tornem especialistas em medicina trans da noite para o dia, mas acho que deveriam ter consciência do que sabem e do que não sabem e ligar para um especialista quando necessário”, afirmou Bailey, 51, vice-diretor de relações humanas na Human Rights Campaign, um grupo de defesa dos direitos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros).

A experiência de Bailey é similar à de muitos pacientes transgêneros, tanto os que realizaram a transição completa, quanto os que ainda estão no processo. Pesquisas sobre as necessidades médicas não relacionadas à transição ainda são limitadas; a maioria das faculdades de medicina não prepara os médicos para atender esse público.

“O que acontece quando você vai além das necessidades imediatas da transição e passa a ter problemas como diabetes, câncer ou vai parar na emergência?”, questionou Karl Surkan, 46, professor de estudos da mulher no MIT e na Universidade Temple.

Surkan, que está em transição de mulher para homem, testemunhou esses problemas em primeira mão: ele é portador do gene BRCA1 e foi diagnosticado com câncer de mama. Quando perguntou se a testosterona poderia afetar os tratamentos, seu oncologista respondeu: “Provavelmente sim, mas não temos dados indicando que o uso de testosterona possa causar a recorrência do câncer. Gostaríamos de poder ajudá-lo”.

Karl Surkan tem 46 anos e está em transição de mulher para homem (Mark Makela/The New York Times)

De fato, existem poucos estudos longitudinais sobre o uso de hormônios na comunidade trans. Muitos médicos não sabem que alguns homens transgêneros ainda precisam ser submetidos a exames de papanicolau e mamografias, além de que todas as mulheres trans precisam ser submetidas a exames de próstata.

“Muitos homens e mulheres trans não fizeram operação de mudança de sexo e ainda contam com os órgãos reprodutores com os quais nasceram”, afirmou Harvey Makadon, diretor do programa de formação e treinamento do Instituto Fenway, em Boston, e professor de medicina clínica na Faculdade de Medicina de Harvard. “Todas as mulheres trans ainda têm próstata, os bons médicos precisam aprender sobre a anatomia atual e realizar os tratamentos e exames preventivos necessários.”

Além das preocupações médicas, muitos pacientes afirmam que são discriminados por médicos e membros da equipe médica, que utilizam os pronomes incorretos, chamam pelos nomes errados ou os colocam em quartos com pessoas do gênero errado.

De acordo com um relatório publicado pela Lambda Legal, em 2010, 70% dos entrevistados já haviam sofrido alguma discriminação grave em contexto médico. Além disso, um estudo envolvendo 6.000 pessoas trans realizado pelo Centro Nacional de Igualdade Para Pessoas Trans e pela Força Tarefa Nacional LGBT, em 2011,  revelou que 19% dos entrevistados já tiveram tratamento médico recusado por conta de sua situação.

Muitos deles simplesmente deixaram de ir ao médico, enquanto 28% evitaram tratamentos após doenças ou acidentes, e 33% postergaram ou deixaram de buscar tratamentos preventivos por conta de experiências anteriores com médicos.

Um relatório publicado pela Fundação HRC, em 2014, revelou que dos 501 hospitais pesquisados, 49% não incluíam “orientação sexual” e “identidade de gênero” nas políticas de não discriminação de pacientes.

Os hospitais, por sua vez, muitas vezes ficam sem saber o que fazer. Onde eles devem colocar pacientes que se identificam como mulheres, mas que ainda são homens do ponto de vista anatômico, ou que estão registradas dessa forma na certidão de nascimento?

Surkan afirmou que foi colocado em quartos com outras mulheres. “Isso não me incomoda tanto quanto afeta as pessoas que ficam comigo no mesmo quarto”, afirmou. “Tenho um amigo que é muito mais masculino e passou por uma histerectomia, mas foi colocado na ala das mulheres. Foi bem estranho para todo mundo.” Desde então, ele fundou o TransRecord, que em parcerias com sites como o “Rad Remedy”, serve como uma espécie de central para pessoas trans em busca de tratamento médico.

Em julho do ano passado, uma mulher trans acusou o Brooklyn Hospital Center de discriminação sexual depois de ser colocada em um quarto com um homem. “Não percebemos que se tratava de uma pessoa trans”, afirmou Joan Clark, porta-voz do hospital. A instituição agora exige que todos os funcionários sejam submetidos a um treinamento de sensibilização. “Acho que isso nos tornou uma organização ainda melhor. Eles não querem receber um tratamento diferente, mas um tratamento igualitário.”

Wrene Robyn, 46, uma mulher trans de Somerville, Massachusetts, começou a transição em 1989, quando trocou o nome da carteira de motorista e dos cartões do seguro social de masculino para feminino. Embora ela esteja bem integrada socialmente, evita ir ao médico há anos. “A maioria das pessoas trans não vai ao hospital porque morre de medo do que pode acontecer. Ficam com medo de tudo. Não querem ser reconhecidas de forma incorreta e não querem ter de explicar o que têm ou não entre as pernas.”

Em abril, depois de sofrer com uma pancreatite, Wrene ficou uma semana internada no Hospital Geral de Massachusetts, em Boston, onde se hospedou em um quarto privativo. “Ninguém me perguntou o que eu preferia”, afirmou ela, que trabalha como engenheira de software do hospital e também faz parte do comitê de tratamento a pessoas trans da instituição. Além de se preocuparem com a discriminação, “muitas pessoas trans pensam que o custo financeiro pode ser superior. Geralmente não temos condições de pagar por quartos privativos” (no caso dela, o quarto foi coberto pelo plano de saúde).

Alguns hospitais estão remodelando –ou adotando– as políticas de tratamento de pessoas trans. No Hospital Geral de Massachusetts, por exemplo, a instituição pergunta aos pacientes trans se preferem ficar em quartos privativos ou duplos. “Caso fiquem em quartos duplos, perguntamos como eles se identificam. Se disserem que se identificam como mulher, colocamos em um quarto com outra mulher. Caso se identifiquem como homem, são colocados em quartos com outros homens”, afirmou Terri Ogan, porta-voz do hospital.

Desde 2013, os pacientes trans do Sistema de Saúde Mount Sinai, que conta com sete hospitais em Nova York, são instalados de acordo com sua atual identidade de gênero, a despeito do estágio de transição física em que se encontrem. Eles também podem optar por quartos individuais.

Anteriormente, o hospital sempre colocava esses pacientes em quartos privativos, mas essa medida tem desvantagens: muitos pacientes se sentiam segregados e temiam a possibilidade de custos adicionais (embora o quarto não fosse cobrado). “Com frequência, as pessoas trans tinham de aguardar na emergência pela abertura de um quarto individual”, afirmou Barbara Warren, diretora dos programas e políticas LGBT do centro de diversidade e inclusão do Mount Sinai.

Terry Lynam, porta-voz do Sistema de Saúde North Shore LIJ, que conta com 21 hospitais em Nova York, Long Island e Westchester, afirmou que a política da instituição para pessoas trans, que foi aprovada em novembro de 2014, é tratar esse tipo de paciente como qualquer outro. “O que significa que não damos necessariamente um quarto privativo para pessoas trans”, afirmou Lynam. Contudo, ele reconhece que a questão se torna um pouco mais complicada com pacientes que ainda têm a aparência de seus gêneros de nascimento. Nesse caso, se o colega de quarto não se sentir confortável, “tentaremos acomodar o paciente e mudar a pessoa que reclamar”, afirmou.

Os defensores dos direitos LGBT acreditam que ainda há muito por fazer. “Há tempos, tenho dito aos hospitais que é preciso pensar sobre isso e adotar políticas de forma proativa”, afirmou Tari Hanneman, vice-diretora do Programa de Saúde e Envelhecimento da Human Rights Campaign. “A primeira vez que você pensa sobre onde colocar pacientes trans não deve ser quando eles chegam ao hospital.”

Abby Ellin

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